30 de set. de 2019

LUA EM FORMA DE FOICE...

Meu caro, minha cara.

Saio do trabalho e olho para o céu. Já está escuro e a lua se parece com aquela da bandeira da Turquia. Vou para minha casa.

Faço o retorno por debaixo do viaduto e vejo a casa. Ela é feita de terra, passarela, viaduto, tapume e cobertor. Outro dia, os moradores varriam a terra, enquanto uma fogueira improvisada esquentava o almoço.

Aquela casa também tem quartos. Pelo que vi, são dois, feitos de compensado e cobertor. Durante o dia dá pra ver os colchões feitos de papelão. À noite não dá pra ver nada, por a porta é fechada com a coberta presa como varal.

Durante dia e noite, muitas pessoas passam por aquela casa. Passam à pé, bicicleta e moto para ir e vir dos empregos.

Acho que os moradores também têm seus empregos, mas diferentes...

Chego em casa e reclamo coisas do trabalho. Tomo banho e sento no sofá. Daqui eu vejo a lua da janela do meu quarto.

Do quarto daquela casa de viaduto não há janelas para a lua...

Ribeirão Preto, 30 de setembro de 2019





22 de set. de 2019

A CAIXA

Meu caro, minha cara.

Guardo lembranças de lugares e pessoas. Quando alguém viaja, já saio logo pedindo um imã de geladeira de presente (rsrsrs). Quando viajo, trato de arrumar uma lembrança do local. Quando alguém chega de viagem e me traz um mimo, fico muito feliz.

De todas as coisas que comprei e ganhei em todos esses anos, a mais intrigante é uma caixinha de madeira que ganhei do meu primeiro namorado.

Era meu primeiro ano de faculdade e eu arrumei como namorado O CARA. Todas babavam nele. Ninguém sabia qual era a dele. Ele era aquele galã enigmático, bem ao estilo "Juventude Transviada".

E ele era meu.

Completamente apaixonada, amava tudo nele. Quando ele foi para a cidade dele e me trouxe a caixinha de madeira de presente, fiquei super feliz. Ele disse "achei a sua cara". E era!

O mundo era perfeito.

Até o dia 17 de novembro de 2000.

Ou melhor: a noite de 17 de novembro de 2000.

(Esse é o momento em que eu travo e me arrependo de ter começado esse assunto. Mas tudo que tem um começo merece ter seu desfecho)

Hoje, com a distância do tempo, eu posso eleger esse dia como o pior da minha vida. O mais humilhante. O mais violento. O mais degradante.

Horror travestido de obrigações.

Que não acabaram naquele dia.

Mas, um dia, acabaram.

Queimei fotos, chorei, fiz muita besteira. Muita.

Muita.

Muita mesmo.

Foi isso que me empurrou para a terapia. Estou nela até hoje.

Ainda bem.

Hoje eu posso dizer que lido melhor com os eventos que se passaram comigo. Não só o desse dia, mas também dele.

De todas as coisas sobre essa história que deixei para traz ou destruí, a caixa de madeira foi a única que não tive coragem de mexer. Ela está na minha sala hoje, como um simples objeto de decoração aos olhos de muitos.

Para os meus, é a lembrança de algo que foi bom. Mesmo que, depois, tenha se transformado em uma cicatriz.

Ribeirão Preto, 22 de setembro de 2019.


Iggy Pop - Candy


"Você me amou sem interesse"

19 de set. de 2019

MESMO TRAJETO

Meu caro, minha cara.

Setembro é época de céu opaco. Só quem vive aqui sabe o que é.

Acordo e fico na cama, pois não sou do tipo de pessoa que acorda e levanta num salto. Decido sair dela quando o Juvenal chegou do lado de fora, arranhando a porta do quarto, querendo entrar. Os miadinhos dele cessam e vou até ele. Magro, já que não tem vontade de comer devido ao calor intenso, ele só bebe água. Aos montes.

Abro a porta, ele olha pra mim e se apoia nas patinhas traseiras pra se projetar nos meus braços: quer colo, o danado. Pego ele que nem criança e fico andando pela casa assim, com ele no meu colo, feito o filho humano que acho que nunca vou ter.

É muito gostoso sentir ele ronronar...

Coloco ele no chão e dou sequência ao dia: arrumo a cama, bebo água, tomo banho, passo protetor e me visto. Por último de tudo vem o perfume. Adoro perfume...

Saio, ligo o carro, ligo o ar condicionado e resolvo não colocar os óculos escuros. Ligo o rádio e escuto uma música da década de 90. No meio do caminho, paro o carro no meio da rua: galinhas d'angola fugiram de algum quintal e estão zanzando pelo trânsito do bairro. Acho graça (elas são engraçadinhas). O cara do pálio vermelho quase que não para o carro para elas. "Para! Filho da Puta!", é o que eu grito de dentro do meu carro. O pessoal que está fazendo caminhada escuta e acha graça.

Aliás, por que as galinhas d'angola atravessaram a rua?

Para chegar ao outro lado...

Com as galinhas em segurança na calçada, sigo em frente. E, em frente, há cavalos pastando o pasto seco. Passando por eles também está o senhor gordinho que corre todos os dias. Ele sempre está suado e com cara de quem vai morrer de infarto, mas todos os dias ele corre. Eu? Esperando a dor nas costas passar para voltar a caminhar.

Sigo em frente, faço curvas, desvio de buracos. No meio do caminho para o trabalho, vejo nosso futuro.

Todos os dias, na ida e na volta. Ao lado dele, estão seus dois velórios. São raros os dias em que não há ninguém sendo velado neles.

Sigo em frente. Seguimos em frente.

Ribeirão Preto, 19 de setembro de 2019.


17 de set. de 2019

NOS OLHOS DOS OUTROS...

Meu caro, minha cara.

Já dizia o ditado: "Pimenta nos olhos dos outros é refresco".

Tudo porque minimizamos a experiência do outro, principalmente quando é uma experiência negativa.

"Não é tão ruim assim..."
"Isso não é dor, eu manha!"
"Não consegue? Precisa se esforçar mais."
"Fez porque quis. Agora aguenta!"

Esse é um prazer muito sádico.

Por que digo tudo isso? Porque quero empurrar a filha da puta da minha vizinha da escada, em resposta à pimenta que ela colocou nos meus olhos.

A causa disso tudo? Nem vale a pena contar. Seria um rosário de reclamações sem sentido, desfiando o tempo e a paciência de quem lê.

Quem levantou a bandeira da paz foi meu marido. Levantou para mim, porque pra'quela vaca, eu quero mesmo que um galão de ácido caia na cara dela.

Mas meu marido pede paciê... Minto: ele pede inércia. "Pelo menos por hoje, não faça nada. Só por hoje".

Como no mantra dos Alcoólicos Anônimos.

Não fiz nada e não vou fazer.

O que fiz foi bem o oposto: lembrei de um vídeo que recebi de um pastor falando sobre o amor ao próximo. A grande incapacidade do ser humano em interpretar o que é esse "amar ao próximo" que Jesus tanto falava.

"Não é gostar do próximo. É lembrar que esse 'próximo' que  você odeia também é um ser humano, que tem uma história, dilemas, defeitos, qualidades, características, limitações e talentos. É lembrar que meu ódio não dá direito a tirar daquela pessoa a sua humanidade".

(Não foi exatamente isso que ele falou, mas o sentido é esse aí)

Resumo do texto? Eu luto por poder amar ao próximo, mas eu odeio amar ao próximo.

Ribeirão Preto, 17 de setembro de 2019

14 de set. de 2019

PERFIL DEMOGRÁFICO

Meu caro, minha cara.

Quando estava fazendo minha inscrição para os vestibulares, eu precisei preencher algumas fichas.

(Não sei se agora o preenchimento é online, mas na minha época era em papel)

Foi nessa época que eu decidi pela Psicologia.

Hoje eu digo que foi um erro enorme do ponto de vista de carreira. Mas que, com a história que eu tenho e com as coisas que eu percebo atualmente, foi a decisão mais sensata que eu poderia tomar naquela época.

(Mas para minha carreira foi uma bosta)

Preenchi as fichas no próprio cursinho e entreguei na secretaria. Além das informações de contato e do curso de interesse, havia uma parte do questionário dedicada ao perfil demográfico do inscrito.

Entre outras perguntas havia aquela sobre religião. "Qual a sua religião?", seguido de vários quadradinhos com opções.

Eu marquei "nenhuma".

Essa foi a primeira vez que eu admiti isso.

Nascida e criada dentro de uma família católica, filha de uma mãe ultra católica que me consagrou a uma santa criança e virgem, eu fui batizada e crismada, convidada para ser catequista, participante de grupos de jovens, com direito a retiros, corais e os cambáu.

Mas algo estava errado.

Quando disse a meus pais que eu já tinha feito a inscrição no vestibular, sem a "ajuda" (na realidade, a tutela) deles, quiseram saber tudo o que eu respondi. Quando disse que na parte da "religião" eu coloque "nenhuma", percebi que Satã baixou lá em casa, porque eu nunca vi meus pais tão bravos.

(Mentira. Vi sim. Milhares de vezes. Mas foi jeito de falar)

Naquela época eu ainda dava respostas francas e sinceras a tudo que perguntavam. Mesmo sabendo que iria me foder com isso.

(Agradeço ao cosmos por não estar mais naquela época)

Entrei na faculdade, estudei religiões, estudei um monte de coisas, pensei que fosse atéia, mudei de ideia e voltei para a missa e desisti de tudo quando, numa missa de ano novo, comecei a chorar ao passar pelas portas da igreja.

Um choro de desespero, asco, medo, nojo, raiva.

Aquilo não era para mim.

Meus pais haviam me obrigado a ir com eles nessa ocasião, mas viram a minha reação, me viram segurando tudo aquilo dentro de mim... Acho que minha revolta era tão nítida que eles se espantaram. Daquele dia em diante nunca mais me obrigaram a ir numa missa. Sempre me perguntavam antes se eu queria ir ou não.

Depois de alguns anos, nem perguntar eles perguntam mais. Já sabem que a resposta é "não".

Três letrinhas abençoadas, que me ajudam a criar limites e me dão espaço para pensar (por enquanto) e fazer (daqui a pouco) o que eu realmente quero da minha vida.

Quem diria que um simples "x" desencadearia tanta coisa?

Ribeirão Preto, 14 de setembro de 2019.


6 de set. de 2019

MAIS DO MESMO

Meu caro, minha cara.

Andávamos aos pares nos domingos de manhã ao sol. Não me lembro se, antes, íamos à missa. Acho que não. Ir à missa sempre foi uma tortura. Mas andar pelo calçadão não era.

O sol traz os turistas e deles tínhamos que nos desviar. Sorte que eles queriam areia, ao invés de chão de cimento. Andávamos e conversávamos, brincando que as antenas parabólicas em cima dos prédios (novidade na época) eram redes montadas para pescar peixes voadores.

Olhávamos as pessoas, os carros, as cenas. Absorvia as histórias que via e inventava.

Os domingos de sol e caminhada eram os melhores...

(...)

Não passava protetor solar. Achava ruim minha mãe passar isso em mim e ter que esperar aquela meleca secar. Queria brincar, brincar e brincar. Nadar até onde o pé não alcançava o chão e sentir medo por isso. Nunca mais sair da água, mas ter que sair dela para voltar à realidade. Uma realidade que  cobrava o preço por uma pele queimada de sol dentro de um carro quente, sem ar condicionado, numa fila de carros esperando sua vez para entrar na balsa e retornar para casa.

Chorava com a pele ardendo pelo sal e sol e teimosia. Sei que enchia o saco de todos com meu choro. Mas... Fazer o que? Era só uma criança...

(...)

Mais de duas décadas se passaram até eu voltar a molhar meus pés do jeito certo. Andava sem rumo e catava conchas brancas na areia branca. Até lembrei de passar o protetor antes e colocar um boné, mas entrava na água tantas vezes para limpar a areia das conchas que catava. Com isso, também lavava o corpo e esquecia do protetor. Peguei uma insolação que só os banhos de cachoeira fizeram sarar. Andava sozinha pelas ruas, sabendo que estava num lugar seguro. Bebia cachaça, cerveja e caipirinha. Não tinha relógio e não tinha roteiro. Passava os dias ouvindo "Because". Tirei as primeiras fotos pelas quais me orgulhei.

(...)

Namorava nessa época e foi um final de ano quase horrível. O que salvou foi a tempestade, vinda do mar, lá longe, aos poucos alcançando a costa. Via as pessoas fugindo, o vento varrendo cabelos, roupas, rostos e chinelos. Via os raios, ouvia os trovões. Sorria.

No dia seguinte, sol. Andava pela orla e via o resultado: muitas conchas quebradas, muitos siris mortos, mariscos soltos de suas pedras. Um mosaico lindo vindo da fúria.

Não havia fúria alí. Havia apenas natureza.

(...)

Estava frio. O tempo todo, frio. E vento. E pescadores com tarrafas a poucos metros da areia. Conversavam com seu sotaque apressado, enquanto algumas garças e gaivotas esperavam por alguma sobra. Não sei o que pescavam. Eu só queria andar.

No dia seguinte, vento e pés descalços. Sem mergulhos dessa vez. Apenas matando as saudades. Apenas me sentindo em casa. Apenas querendo caminhar pela orla. Esperando sair dali e voltar para uma casa que fosse próxima de lá. De lá ou de qualquer outro lugar igual.

Ribeirão Preto, 06 de setembro de 2019.