7 de out. de 2024

O VELÓRIO DE TODOS NÓS

 Meu caro, minha cara,


Hoje, meu tio João faleceu. Não sei ainda o que aconteceu. Só sei que ele estava doente e que, depois de 20 dias internado, ele se foi.

Não falo muito sobre a família da minha mãe, mas isso agora não tem importância.

O velório será amanhã e o enterro também. Estava falando com meu marido a respeito, enquanto intercalava choro e afagos na Riccota, minha irmã de pelo.

A conversa girou em torno sobre a utilidade do velório. Ele não gosta pois se lembra do velório do pai. Ao lembrar das palavras da mãe dele, “nós nunca mais o veremos novamente”, isso o pegou demais. A tristeza era avassaladora. Eu lembro. Eu estava lá e testemunhei tudo.

Da mesma forma, quando meus pais morreram, ele testemunhou a minha dor. Ele ainda faz isso, aliás. Com meus pais não teve velório. Ambos morreram de Covid e não houve velório para nenhum deles. Todos ficaram de longe, acessíveis apenas pelo whatsapp, com medo de se infectarem.

Quem pode julgá-los? Errados eles não estavam.

Por causa da pandemia também não houve o velório do meu tio Edmilson, que faleceu por causa de insuficiência cardíaca. Mesmo não sendo vítima da Covid, proibiram o velório para evitar aglomeração de pessoas.

Amanhã será o velório do meu tio João. Verei minha família lá. A família que não pude estar perto para chorar por todos os que se foram, com todos os que ficaram. Será o primeiro velório “decente” que teremos.

Infelizmente, algo decente virá de algo muito, muito triste.


Ribeirão Preto, 07 de outubro de 2024.




25 de set. de 2024

CORPORATE COMEDY: RINDO PARA NÃO CHORAR...

 Meu caro, minha cara...


O stand up comedy (ou só stand up, no geral) tem várias linhas de humor: a de costumes, cotidiano, política, a de resistência e a autodepreciativa.

(não coloco aqui os “politicamente incorretos” porque fazer piada com gênero, etnia, classe social e o escambau é coisa de gente idiota. Aliás, o stand up de resistência costuma tirar sarro desse tipo de “gente”)

Bom, mas voltando ao assunto: tem um monte de tipos de stand ups por aí.

E o que isso tem a ver com esse ambiente “mágico” que é esse daqui onde estamos? Ultimamente, bastante coisa.

Motivo: tenho reparado no aumento de profissionais que publicam aqui postagens TIRANDO SARRO desse “mundo-corporativo-sério-e-sisudo-em-que-somos-obrigados-a-trabalhar”, ou do seu primo, o “mundo-corporativo-cheio-de-esperança-e-gratiluz-que-só-deve-existir-para-aumentar-as-vendas-de-Vonau-ou-DraminB6”.

(pode ser que seja só o algoritmo do linkedinho - @tatiany lukrafka, não nos conhecemos, mas vou usar o apelido “carinhoso” que deu para essa plataforma linda, tudo bem?)

E como o linkedinho é uma rede corporativa, a tiração de sarro geralmente orbita entre os seguintes temas:

- Galerinha animada que usa o linkedinho para mostrar o mundo corporativo como o Reino dos Unicórnios, mesmo a gente sabendo que tá mais para Curral dos Pôneis Malditos;

- Pessoal de atendimento ao cliente desabafando sobre cliente folgado;

- Vagas arrombadas;

- Trabalhos arrombados;

- Profissionais fazendo piada com os RHs;

- Todo mundo tirando onda com a Gupy.


(não coloco no elenco os itens “gestores arrombados”, “colegas de trabalho arrombados” e “subordinados arrombados” porque eu acho que o pessoal ainda tem vergonha e precisa pagar os boletos).

Pois bem: como sou do RH (e do MKT, agora que tive que virar empreendedora na força do ódio - não a parte do RH e MKT, mas a parte do empreender), vou focar aqui nas áreas em que atuo hoje.

Todo santo dia eu abro meu linkedinho e me vejo obrigada a comentar postagens com frases e memes que dizem “rindo, mas de nervoso”, “rindo, mas com respeito” ou “rindo para não chorar”.

Porque... sério: tem vezes que só fazendo PIADA para aguentarmos as coisas que acontecem na nossa vida profissional, não importa se é problema com sistema, cliente, fornecedor, gestor, candidato ou coleguinha. Não tem clonazepam no mundo que chegue o tanto que a gente precisa de uma válvula de escape eficaz para aliviar a pressão!

E sobre o riso, a piada, o humor... Freud explica, viu?



Fazer humor é uma válvula de escape poderosa, um meio de falar tudo o que se deseja por meio do gracejo e da brincadeira. É a habilidade de achar similaridades entre coisas que não têm nada a ver uma com a outra - em outras palavras, encontrar similaridades escondidas. E quando isso acontece, o riso é o resultado.

E por quê?

Porque nos faz pensar em coisas novas (e coisas novas geralmente nos atraem). E porque nos alivia o peito, por falar abertamente algo que não havíamos visto antes uma forma de falar o que queríamos, sem nos prejudicar ou prejudicar alguém.

E para criticar algo sem perder o réu primário, vale tudo: jogo de palavras, duplo sentido, ironia, memes sem fim...

E o que tudo isso tem a ver com mundo corporativo e stand up?

O linkedinho está sendo povoado por vários esquetes de stand up depreciativo e autodepreciativo desse “mundo-corporativo-sisudão”. Já havia reparado nisso?



E não é à toa. Esse ambiente mega protocolar, todo “sério” e “cinza” que vendem pra gente como o “mundo do trabalho”, não existe dessa forma... Ele é muito pior para muita gente e muito mais legal para outras. Vai depender da escolaridade do sujeito, cor da pele, CEP, sobrenome, sorte...

E nesse imbróglio todo, tem gente que:

- Fica doente por causa do trabalho, porque quer atender a padrões de excelência que só existem no mundo das ideias;

- Se acha no direito de tratar mal e ser arrogante com outras pessoas, independentemente de ser ou não melhor tecnicamente melhor que elas;

- É egoísta e não ajuda o coleguinha quando precisa;

- Aceita ser humilhado no trabalho, achando que não vai conseguir coisa melhor que o ajude a pagar seus boletos...



Esse caminhão de postagens que eu vejo por aí, brincando e falando sério ao mesmo tempo, sobre os problemas que enfrentamos no trabalho ou na busca por trabalho... Isso é um sinal de que as coisas não estão bem e que, de alguma forma, estamos nos decidindo sobre falar a respeito.

Mesmo que seja fazendo stand up corporativo.


(...esse é o momento em que eu paro e penso sobre como vou fazer um parágrafo final que conclua o texto, deixando uma boa reflexão para o leitor que chegou até aqui)

(Mas percebo que é inútil, pois não há boa reflexão frente a um ambiente que, no geral, ainda é tóxico e explorador para tantos. Em diferentes níveis, eu sei...)

(Portanto, vou dar uma de J. D. Salinger e terminar por aqui, sem final, porque sei que esses questionamentos estão apenas começando. E coisas que começam não devem ter uma conclusão tão precipitada assim...)


(pois tem vezes que mundo corporativo não tá merecendo ser levado a sério...)


Ribeirão Preto, 25 de setembro de 2024


5 de mai. de 2024

O OVO DE MADEIRA

 Meu caro, minha cara,

Eu acho que foi a minha avó paterna que me mostrou pela primeira vez. E também acho que era uma coisa da minha bisavó, assim como a Pretinha (uma tesoura velha e preta que ela tinha).

Era um ovo de madeira maciça, parte integrante de um jogo de costura feito por minha bisavó com crochê, fuxico e um pote velho de margarina.

Esse pote era antológico lá em casa; por dentro ficavam diferentes linhas coloridas e por fora, na tampa, tinha a almofadinha de fuxico onde as agulhas ficavam espetadas.

O ovo não tinha lugar no pote, mas ficava ao lado dele, dentro do guarda-roupas da minha avó, junto com a Pretinha.


Aquele ovo, para mim, era mágico. Não me pergunte porque: magia não se explica.


Se você, meu caro e minha cara, não sabe porque raios um ovo de madeira é parte de um kit de costura, eu explico.

Esse ovo é usado como base de apoio para remendar tecidos, ao mesmo tempo em que protege seus dedos: você envolve o ovo de madeira com a parte do tecido que está danificada e remenda o rasgo ou buraco amparado nele. Se a agulha escapar, ele vai atingir o ovo, não seus dedos.


O tempo passou e minha vó morreu. Cinco anos depois, meus pais morreram. Já falei sobre isso lá atrás e não vou me delongar aqui.


Na partilha dos bens, meu irmão deu a diretriz: "Eu acho que a gente deve preservar as músicas, os quadros, as fotos, os filmes e livros deles. O resto, eu não tô nem aí."

Achei coerente. Ele falou o que eu pensava.

Então lá fomos nós (minha cunhada e eu) separar as coisas dos meus pais: o que seriam vendidos com a chácara, o que doaríamos, o que ficaria pra gente, o que seria jogado fora.

E, no meio disso tudo, aparece o ovo de madeira e a Pretinha (não sei o que foi feito do pote).

Meu olho cresceu, queria os dois de qualquer jeito.

Bom que meu irmão nem deu trela pra isso. O ovo ficou para mim.


E por que eu resolvi falar do raio desse ovo justo agora?


Porque eu o usei hoje e me dei conta que ele é algo simples e efetivo quando o assunto é coser. Acho que foi essa simplicidade que me cativou.

A forma como ele me ajuda num problema quando remendo uma bermuda, um lençol ou uma meia é tão... singela... e tão genial ao mesmo tempo.

Requer apenas que você tenha o mínimo de coordenação motora fina. Facilita o serviço e protege contra agulhadas involuntárias (um verdadeiro EPI).


Uma solução elegante para algo tão trivial.


Fico pensando quantas outras soluções como essa estão por aí no mundo, prontas para serem convertidas em algo concreto, palpável, usável.

Pois quando escuto pessoas falando em "soluções", essa palavra sempre vem acompanhada do adjetivo "inovadoras". Virou um clichê tão chato... E me faz questionar se é realmente uma "solução" ou se é só "mais-do-mesmo-gourmet".


(...)


Na próxima semana, começarei um novo desafio de trabalho. Não sei bem o que me espera e sinceramente temo que me peçam "soluções inovadoras" para os problemas que eu sei que existem.

Pois quando penso em problemas e soluções, eu só consigo pensar no ovo de madeira - e como as coisas deveriam se parecer mais como ele.


Ribeirão Preto, 05 de maio de 2024




22 de abr. de 2024

CAIBA NAQUILO QUE TE CABE

Meu caro, minha cara.


Anos atrás (ouso dizer que isso deve ter uns 10 anos ou mais), fui numa palestra sobre o lançamento de um livro que tratava sobre Gestão de Carreira.

Foi lá que conheci a Teoria do Terço. Achei algo tão simples que seria difícil alguém não entender do que se tratava.

E segue a teoria:

Em qualquer situação ou problema, divida a responsabilidade por ele em três partes.

  • Um terço da responsabilidade está nas circunstâncias. Trocou o governo, choveu demais, fez muito sol, Mercúrio está retrógrado, rolou uma enchente monstruosa na sua região, virou o mês, começaram uma guerra. Não importa o que aconteça, as circunstâncias geralmente são coisas que não podemos evitar ou mudar seu curso apenas com nosso esforço;
  • Um terço da responsabilidade está nas outras pessoas envolvidas na situação: seu chefe, seus amigos, colegas de trabalho, sua família, seus contatinhos, aquele Exú sem luz do condomínio que nasceu para testar seu réu primário. Todas as pessoas que em maior ou menor grau tem um dedinho na situação ou problema em que você tem na sua frente para enfrentar;
  • Um terço da responsabilidade está em você mesmo: quais conhecimentos você tem, quais coisas desconhece, como já lidou com coisas semelhantes no passado, o que falou para outras pessoas, o que aprendeu com seus acertos e erros, como você decide encarar as coisas que acontecem contigo no dia a dia, quais são seus sonhos e objetivos de vida, do que gosta e do que detesta.


Simples, correto?

Eu não sabia, mas o que eu vi nessa palestra há mais de uma década era o conceito de accountability.

Pois bem. Sabendo agora sobre a Teoria do Terço e que ela é um jeito de explicar na prática o que é accountability, vou fazer umas perguntas com base numa situação hipotética:

Um galho de árvore caiu bem em cima do seu carro e amarrou o capô. De quem é a responsabilidade:

  1. Do capô amassado?
  2. De correr atrás de consertar o carro?
  3. Do conserto em si?

Respostas:

  1. O galho que caiu;
  2. Você;
  3. Do funileiro que você escolheu.


Óbvio, correto? É até meio idiota eu trazer esse exemplo, mas tudo tem um motivo.

Vou te colocar uma outra situação hipotética:

Você é responsável pela entrega de um relatório de resultados trimestral de onde trabalha. É com base nele que os trabalhos de outras três áreas da empresa são planejados e realizados. Faltando cinco dias para o prazo de entrega, o relatório ainda nem começou a ser feito e você pega dengue.

Daí eu pergunto: como esse relatório será entregue no prazo, estando você doente a ponto de não conseguir fazê-lo?

(vou te dar um tempinho para pensar na resposta)

















(já pensou?)

Bom, aqui vai a resposta para a situação: DEPENDE.

Você pode ter respondido que “outra pessoa fará por mim”. Mas tem alguém com o mesmo nível técnico que você, com o mesmo conhecimento e acesso às mesmas informações, no mesmo tempo hábil que você tem para realizar o mesmo relatório, com o mesmo padrão de qualidade?

Tem? Ótimo! Outra pergunta: essa pessoa está DISPONÍVEL para fazer isso? Ou você pensa que colega de trabalho que faz a mesma coisa que você é igual reserva de jogo de futebol? Fica parado no banco, sendo pago para trabalhar só quando você não está escalado?

Você também pode dizer que “vou negociar um prazo maior para a entrega do relatório”. Mas ele não é necessário para o planejamento do trabalho de outras três equipes? E o que essas três equipes vão fazer enquanto você se recupera?

“Mas isso é problema do meu chefe”, alguém pode falar. “Ele/ela ganha mais que eu por um motivo”.

Verdade.

Mas ele/ela pode resolver a situação de uma forma que você não goste tanto assim...

E vamos ser sinceros aqui: quando o assunto é trabalho, empresa nenhuma, por mais humana que seja, vai deixar de buscar resultados e bater metas por causa de você.

Empresa não tem coração, tem CNPJ.

(só que não é por isso que você vai virar o Super Homem corporativo e lutar contra as organizações malvadonas. Afinal, as organizações são organismos autônomos – como você e eu – que têm seus próprios objetivos – como você e eu)

Não quero, com tudo isso, jogar nos seus ombros 100% da responsabilidade sobre o que quer que aconteça nessa situação imaginária que coloquei acima. Mas com certeza vou jogar aqui 33,34% da responsabilidade dessa situação em você.

E esses 33,34% provavelmente são esses daqui: por que, faltando 5 dias para a entrega do relatório, ele mal tinha começado a ser feito por você?

  • “Faltou informação”. Você chegou a pedir a informação para alguém? Outras pessoas estavam atrasadas com a liberação da informação?
  • “Faltou tempo”. Você está sobrecarregado de trabalho? Você teve uma demanda urgente e só foi pensar no relatório depois que a demanda foi entregue? O prazo é pequeno entre a liberação a informação e a entrega do relatório?
  • “Eu esqueci de fazer / Eu empurrei com a barriga / Se não estivesse com dengue não haveria esse problema”. Pois é...

Quando falta a informação ou aquilo que você precisa para executar seu trabalho, quem tem que se virar para arranjar isso é o outro, não você. Outras pessoas são pagas para fazer o trabalho delas.

Significa que você tem que virar um carrasco tirano e estralar o chicote no lombo dos coleguinhas? NÃO! Contudo, você tem que cobrar (com jeito, com respeito, em tempo hábil, mas tem que cobrar).

Quando nos falta tempo para realizar as entregas, é preciso “levantar a mão” e pedir ajuda (do gestor, dos colegas, não importa). Se está sobrecarregado de trabalho, o que você precisa é a) passar parte do seu trabalho para outras pessoas OU; b) renegociar os prazos de entrega do seu trabalho com seu gestor OU; c) quando nenhuma das opções anteriores forem possíveis, deixar claro para as partes interessadas que você não é uma máquina e que vai ter coisa que vai atrasar - e perguntar o que preferem que você deixe em dia e o que pode ficar em atraso.

Quando você esquece de fazer algo ou sabe que empurrou com a barriga uma atividade, só tem uma coisa a ser feita: chega para quem de direito e repita isso daqui.

“Errei. Fui moleque. Peço perdão.”

O que não dá é jogar a responsabilidade do relatório atrasado num mosquito ou se martirizar aos prantos enquanto se pergunta “por que não usei repelente naquele dia?...”

Agora... Precisa chegar numa situação meio crítica (como essa do exemplo) para pensar em tudo isso?

Boa parte dos terços de responsabilidade que NÃO FICAM NA NOSSA MÃO costumam ficar em seus legítimos espaços quando nós, no NOSSO terço de responsabilidade, estabelecemos limites. Isso evita que a gente traga mais responsabilidades do que nos é devido, assim como evita que a gente more na Coitadolândia e se coloque na posição de que tudo de ruim é responsabilidade dos outros.

(ou de Mercúrio retrógrado)

E toda essa conversa foi só sobre um exemplo ligado a trabalho. Quantos outros exemplos, ligados à família, relacionamento amoroso, faculdade, amigos, saúde, dinheiro não existem por aí e que poderiam receber a mesma análise?

Portanto, seja qual situação ou problema que se apresente na sua frente, faça o que lhe caiba. E ponto final. Esses 33,34% de responsabilidade já são um caminhão de coisas que você deve fazer POR VOCÊ.

E aprender isso e colocar em prática NÃO É SIMPLES. Correto?



Ribeirão Preto, 20 de abril de 2024.






12 de mar. de 2024

"SEGUE" O FLUXO

Meu caro, minha cara.

Vista de cima, a piscina infantil do Clube de Regatas Santista tinha o formato de um feijão. Para uma criança de até uns 7, 8 anos, ela por si só já era desafiadora porque havia uma parte mais rasa e outra mais funda. Isso era "o máximo", pois seria como um indicador de que a gente poderia se aventurar nas outras duas piscinas do clube.

Domingo de manhã no verão era geralmente o dia para ir ao clube. Era um saco acordar cedo, eu não entendia porque minha mãe me dava banho para por um biquíni, não entendia porque ela passava protetor ANTES de chegar no clube. Ficava pulando na fila do exame médico, ansiosa por pular na piscina - achava aquilo uma burocracia desnecessaria no auge dos meus 7 anos.

Depois tinha que ir para o vestiário, guardar tudo num armário, colocar a pulseirinha com a chave do armário no pulso, subir a escadaria, passar pelo laguinho de água obrigatório para infestar os pés com cloro e, só então, a piscina infantil.

Anos se passaram entre a piscina infantil e a piscina super funda, que ficava ao lado da cadeira do salva-vidas. Era na piscina de feijão que treinava plantar bananeira, pois na super funda... bem... acho que o motivo é óbvio...

Foi na piscina infantil, isso já com quase 9 anos (eu acho) que tenho uma das lembranças mais legais daquele tempo. Acho que estávamos brincando de pega-pega e a regra é que não podia cortar caminho pelo meio da piscina. E naquele movimento de ir e vir, percebemos que havíamos formado uma corrente d'água que nos "ajudava" a correr/nadar mais rápidos. Logo a brincadeira deixou de ser o pega-pega e virou a de formar uma corrente tão forte, mas tão forte, que pudesse levar a todos numa volta completa pela piscina.

Todas as crianças começaram a andar no mesmo sentido, empurrando a água com as mãos para aumentar o fluxo. Em seguida, alguns pais também entraram - incluindo meu pai - para reforçar o time. Em pouco tempo, havíamos feito uma corrente tão forte que permitiu não apenas as crianças, mas os adultos também,                         serem levados a dar uma volta pela piscina em formado de feijão, sem a necessidade de nadar e por os pés no fundo.

Tudo isso acabou quando a direção do clube interveio. Eles alegaram que as crianças menores não estavam podendo aproveitar a piscina infantil pois as crianças mais velhas estavam formando sua própria corredeira.

Fomos para a piscina funda brincar de Jacque Cousteau.

Anos se passaram.

Décadas, na verdade.

Havia me esquecido da piscina com formato de feijão. 

Agora, estou "no mercado" novamente, procurando trabalho. Ontem a noite eu ponho a cabeça no travesseiro, me lembro dessa cena, e a epifania veio:

Há momentos em que seguimos o fluxos. Há momentos em que fazemos o fluxo.

Fazer dá trabalho, precisará de mais pessoas e pode ser que só dê certo se for num ambiente menor e mais controlado. Mas o fluxo vem. E vem forte.

Eu ainda não sei como fazer isso. Só percebi que "seguir o fluxo" não é mais a única possibilidade que há diante de mim.

Ribeirão Preto, 12 de março de 2024

(Hoje é aniversário de 3 anos da morte da minha mãe. Eu agora entendo porque tomar banho antes de por um biquíni e entrar numa piscina e uso protetor solar praticamente todos os dias...)



13 de jul. de 2023

Octávio Paz

 


CALDO VERDE E CANJA

Meu caro, minha cara...


A conta chegou. A água bateu na bunda. Não tem mais para onde correr.

Após dois anos e meio de vazio e comfort food, minha tristeza só tem a companhia dos 20 e poucos quilos que ganhei nesse período. Um ganho que não compensa nenhuma perda...

Mas, como eu disse, a conta chegou: pressão, glicemia, colesterol, dor. Cheguei ao ponto de me olhar no espelho e ver a pior versão de mim mesma - e a cereja desse bolo de merda é que essa versão lembrou muito minha mãe...

(e lá vamos nós tratar disso na terapia, né?)

Tirei as férias para correr atrás de médico (correr, não. Andar, pois não consigo correr mais). Ainda estou fazendo essa Via Crucis e esta semana foi dedicada ao endócrino e à nutricionista.

Resultado? A água não só bateu na bunda, mas deu aquela lambida gélida no traseiro, sabe? Comprei o leite de soja zero e o biscoito de arroz que a nutricionista mandou e respiro fundo dizendo para mim mesma que tudo isso é para meu bem.

(E fui chorar as pitangas com a minha terapeuta...)

Hoje, fonte geradora de grande ansiedade, a comida é um dos meus maiores prazeres e agora é fruto de grande culpa. E no decorrer da conversa, fui para um tempo em que a comida era só alegria.

Um tempo em que minha mãe cozinhava e ela era a melhor cozinheira do mundo e tudo o que eu comia era gostoso e tinha uma história por trás.

Como está meio frio esta noite, lembrei das sopas que ela fazia, em especial o caldo verde. Descrevi o passo a passo, sentindo o cheiro do paio refogado, da cebola e do alho fritando, a couve fininha murchando no fundo da panela e a batata cozinha e amassada se juntando ao bando. Ao final, azeite.

Com um bom pedaço de pão, essa sopa é dos deuses...

E ela sabia disso.

E o caldo verde me levou ao Almeida, com as paredes de azulejo verde água cobrindo tudo do chão ao teto, piso de tijolão vermelho e aquela cadeira laranja encardida, com os pés de ferro.

Toda vez que tinha aniversário, meu irmão e eu enchíamos o rabo de coxinha, refrigerante e maravilha, mas meus pais deixavam um espacinho do estômago para ir ao Almeida depois da festa e pedir um caldo verde ou canja. Lembro dos dois comendo, o Ricardo e eu brincando com o secador de mão de ar quente, enquanto na mesa ao lado tinha um velho barrigudo com a camisa aberta até o umbigo discutindo sobre o Santos com o garçom de calça preta e camisa branca, enquanto chegava o pessoal que saía do teatro municipal depois de uma apresentação, seguido por um povo emendando a balada por lá e por último (mas não menos importante), duas travestis jantando, com o lápis de olho derretido, caras de cansada, sabendo que assim que comerem, voltarão ao trabalho.

A canja era coisa de criança, era sopa de criança. Dela eu não gostava muito, não achava que ela acertava todas as vezes, mas comia mesmo assim, porque mesmo não tirando um 10, ela sempre passava de ano. Meus pais diziam que, quando éramos bebês, ela fazia uma canja com bastante arroz, frango, tomate, cenoura e ovo. Fazia para levar nos restaurantes que visitávamos, para gente não ter que comer a comida do restaurante e passar mal com alguma coisa.

(Eles eram desses...)

Volto para as sopas de adulto, volto para a situação em que me encontro hoje. Ao final da sessão, volto para a lista de coisas que tenho que fazer, comprar e comer para abandonar as coisas ruins que conquistei.

Quem diria que perder seria motivo de orgulho, não é mesmo?

Perder com parcimônia, com resignação.

Não tem mais para onde correr.

Terei que andar.

(e arriscar fazer o caldo verde que minha mãe fazia... sopa de adulto...)


Ribeirão Preto, 13 de julho de 2023.