13 de set. de 2017

Beatles - I'm so tired


"Você sabe que eu daria tudo que eu tenho
Por um pouquinho de paz interior."

FOSCO SOL VERMELHO

Meu caro, minha cara,

      Após muito tempo, resolvo lembrar a volta da casa dos meus pais.
      Não vou me lembrar da primeira vez que isso aconteceu, mas de todas as primeiras vezes que isso aconteceu.
      Todas as que consigo lembrar, é claro.
       Lembro quando fomos a primeira vez para o Rio de Janeiro, o Ricardo e eu. Lembro que naquele Natal, a Santana nos pegou no começo da ceia de Natal e fez todos os primos decorarem "Noite Feliz". Lembro que vomitei no ônibus e que cariocas gostam de ketchup na pizza.
      Que blasfêmia...
      Lembro quando fomos para o Paraíso do Sol, seja lá onde isso for. Não havia ninguém da minha sala naquele passeio. Pensando bem, havia sim: uns meninos da minha sala que me detestavam, porque no ano anterior eu briguei com um deles e recebi a alcunha de primata.
      Aquilo não foi legal. E o pior de tudo é que eu achava bem que eu fiz por merecer.
      É claro que o final de semana foi uma merda. Só consegui mais ainda enfiar minha reputação na lama, a mesma lama em que eu escorreguei e cai no campo de futebol improvisado naquele úmido recanto de inverno.
      Lembro quando fui para a faculdade. Da viagem de ida com eles para o outro lado do estado. Lembro de sair uma vez de madrugada da cidade em que meus pais moravam (e ainda moram), de ônibus, com frio por causa do inverno e do tempo. Lembro do sol se levantar branco naquela manhã amarela. Lembro de ter chorado muito e escondido o choro. Quando cheguei em Ribeirão para fazer a baldeação, já havia me esquecido de tudo.
      Lembro quando mais uma vez fui embora da casa dos meus pais. Vinha trabalhar em Ribeirão e tudo ia ser diferente. Foi mesmo. Mas não como eu pensava. Lembro quando voltei à casa deles, falida. Lembro como me ajudaram. Lembro de voltar e continuar. Lembro de prometer mudar e não mudei.
      Lembro quando as coisas melhoraram, após muito tempo de só ir piorando tudo. Lembro do meu pai vir até aqui de ônibus só pra me acompanhar na volta, comigo dirigindo. Foi assim que eu aprendi a dirigir na estrada. Mas foi sozinha e segurando o santinho de Nossa Senhora que eu aprendi a dirigir na cidade.
      Lembro quando voltavam os de Campinas: era a primeira vez que eu pegava o famoso " Carolina Não Toca". Eu não podia tocar naquele carro. Coisas do meu pai. Acho que minha mãe estava em pânico. Não pelo carro, mas por tudo: aqueles dias eram os dias da cirurgia do meu pai. Cirurgia delicada, mas deu tudo certo. Menos para ela: ficou tão nervosa que quem teve que voltar no banco de trás foi ela.
      Ele veio comigo na frente, curtindo um céu de brigadeiro e uma velocidade de cruzeiro. Ela só se preocupava com os caminhões que nunca nos atropelaram.
      Lembro de sair da casa deles e finalmente ir para a minha casa. Minhas coisas. Minhas contas. Mas sempre lembrando que sempre deverei a eles. Ou melhor: ao Ricardo.
      Não devia estar falando isso aqui.
      Lembro das Páscoas da ressurreição, onde o que tinha no cardápio era bacalhau, grão de bico  e epifania.
      Lembro de uma das últimas vezes. Estava só eu e o gato. Minha mãe estava na cama, com a coluna fraturada e rezando pra calcificar sem macular a medula. Lembro do meu pai tendo que fazer o serviço de casa pela primeira vez na vida. Nenhum dos dois confortáveis com a situação. Nenhum dos dois tendo culpa do que aconteceu. E eu indo embora para viver a minha vida e enfrentar os meus problemas.
      Na volta, só haviam carros, poeira e um grande e fosco sol vermelho.

Ribeirão Preto, 13 de setembro de 2017