16 de out. de 2021

TROUXA ENCHARCADA DE SANGUE

 Meu caro, minha cara.


Minha mãe sempre me contava algumas histórias sobre a minha avó.  Embora me lembre de quase todas, há uma que sempre me marcou, mas nunca havia entendido por qual motivo.

Quando minha mãe era criança, ela e a família eram colonos em uma fazenda. Um dia, minha avó foi chamada para ajudar no parto de uma conhecida.

O colchão, a roupa de cama e camisola ficaram ensopados de sangue, porque foi um parto muito difícil.

Mas mãe e bebê sobreviveram (segundo minha mãe).

Para ajudar a família (pois demoraria dias ou semanas até a parturiente melhorar), minha avó pegou todas as roupas usadas no parto para lavar.

Embalou tudo dentro de uma trouxa enorme e foi até o rio que havia por perto. Fincou uma estaca em cada lado do rio (não era muito largo e profundo onde ela fez isso), amarrou uma corda na ponta de cada estaca e, por fim, amarrou a trouxa de roupa no meio da corda, tomando o cuidado para que tudo ficasse bem preso e não fosse levado pela correnteza.

Da forma como ela fez, a corredeira suave do rio fazia com que suas águas passassem por entre a trouxa, levando para baixo toda a sujeira do parto e todo o sangue. 

Não me recordo agora quanto tempo minha mãe disse que essa trouxa ficou amarrada nessa corda, dentro do rio.

Um dia? Dois? Uma semana?

Realmente, não tenho como dar uma estimativa de tempo confiável. 

Mas sei que, ao final desse período, minha avó buscou a trouxa com as roupas e todo o serviço pesado havia sido feito pelo tempo, pela água e pelo engenho do seu raciocínio. 


(...)


Como disse acima, até então não havia me dado conta do porquê essa história ficou na minha memória desde o momento que eu a escutei.

Mas hoje eu percebi.

A violência de trazer algo novo para este mundo, a debilidade que isso provoca, a preservação do que se é importante, a ação do tempo nas coisas e pessoas, a sagacidade do simples, o poder da atitude...

Tudo hoje fez sentido...

E, fazendo sentido, me senti trouxa... Uma trouxa muito pesada, que não sabe ao certo o que há de novo no mundo, apenas esperando ansiosamente um rio de lágrimas para me lavar e levar embora tudo aquilo que não faz mais sentido algum...


(...)


Céus... Quando isso tudo vai ter um fim?...


Ribeirão Preto,  16 de outubro de 2021...




10 de out. de 2021

DEUSES DE UMA NOITE SÓ

Meu caro, minha cara.


Duas noites atrás conheci dois deuses em meu sonho.

Um casal, cujo único objetivo nessa terra era ficarem vivos e garantirem. (por qualquer meio) que seus filhos também se mantivessem assim.

E quando eu digo "por qualquer meio", eu falo muito sério.

Porque estavam dispostos a matar, enganar, subjugar, encarcerar e fazer sofrer quem quisesse impedir esses dois objetivos.

Além disso, sempre que permitido, aumentavam a prole, pois as imagens que eu tive davam a entender que o índice de mortalidade deles na infância era muito alto. Porém, essa preocupação não era apenas pelos pequenos e desprotegidos: gerar uma criança significava dar a elas uma parte de si, uma parte da uma força, na esperança que, quando crescidas, pudessem também lutar para que os de sua espécie também sobrevivessem e prosperassem.

No entanto, a noite em que eles me foram apresentados também foi a noite em que fiquei sabendo que seus planos foram frustrados. Pois sua casa foi invadida e seus filhos, caçados. Vi as crianças mais novas, deuses sem algum poder, serem arrancadas do colo dos irmãos mais velhos, enquanto o casal tentava (em vão) ofender seus ofensores com a força dos braços e as unhas em forma de adaga.

Foi um massacre. Ambos os lados tiveram suas baixas, mas o mais cruel foi ver os filhos daqueles deuses inertes, com peito e estômagos feridos, com gargantas rasgadas e olhos frios e fechados.

Os dois deuses, adultos, ao verem que sua permanência na própria casa era impossível, fugiram para algum canto feio e sujo, longe e mal afamado o suficiente para espantar invasores por si só.

Aos prantos, ambos fizeram as únicas coisas que poderiam fazer no momento: chorar muito, buscar consolo um nos braços do outro, jurar vingança e buscar se fortalecer.

Para isso, precisavam de ajuda e ela não tardou. Sabendo que os dois deuses foram vencidos e os pequenos deuses, mortos, seus apoiadores (ou discípulos, ou adoradores) vieram ao seu encontro. Passavam por um longo corredor, cheio de lâminas, que testavam a vontade dos crentes até o poderoso e triste casal. Enquanto a deusa perdia suas forças e, pouco a pouco via seus dedos e pele se transformarem em palha, seu par sofria transformação parecida, com as mãos se transformando em garras e o rosto, o semblante de um cachorro preto.

Com a ajuda de seus adoradores, os dois se deitaram em uma canoa feita de juncos e puderam descansar sob uma cama de pétalas de rosas brancas, rosas e vermelhas. As últimas pétalas foram deixadas para serem jogadas delicadamente sobre o rosto de palha e o rosto de cão.

Eles iriam dormir, protegidos parte pela escuridão da noite, parte pelo fogo das tochas que os discípulos mantinham acesas.

Para embalar o sono dos deuses, uma mulher velou por eles. Estava vestida de branco, tinha os cabelos soltos e muito pretos. Sobre a cabeça, uma guirlanda de flores vermelhas. Durante a canção que entoava, dançava em rodopios largos, ritmados e lentos. Perguntei a uma das pessoas que ajudaram a preparar o sono dos deuses quem era a mulher: uma sacerdotisa, uma virgem, uma noiva. Eles disseram que não era nenhuma coisa, nem outra. Eles não precisavam de ninguém especial, pois o importante era que alguém se importasse o suficiente para estar ali por eles, com e para eles.

Enquanto a mulher cantava e dançava, os deuses adormeceram e, pelo menos durante aquela noite, dormiram e puderam se esquecer que um dia haviam tido filhos e que, se lembrando deles, esqueceram que um dia foram assassinados por causa do medo transformado em inquisição.

Ao amanhecer, nas ruínas do refúgio, os apoiadores ainda estavam lá, no alto do edifício antigo e carcomido pelo tempo e vegetação. A claridade mostrava que o prédio quase não tinha mais telhados e apenas poucos trechos ainda mantinham paredes em pé, em detrimento das árvores e trepadeiras. Mesmo assim, era um belo local.

Foi também na claridade do dia que eu percebi quem eram aqueles adoradores: párias, deformados, doentes, velhos, pessoas excluídas de forma geral.

Na canoa feita de juncos, deus e deusa acordam, já com seus rostos "normais" de volta. De mãos dadas, foram de súdito a súdito agradecer pela vigília, enquanto impunham as mãos sobre sobre suas cabeças e davam beijos nos rostos de todos.

E prometeram que, enquanto não tivessem seus próprios filhos novamente, adotariam todos aqueles que os guardaram naquela noite, que os defenderiam e transmitiriam a eles as coisas que conheciam, visto que eles andavam por sobre a terra por muitas e muitas gerações e absorveram um número sem fim de informações e sabedoria.

Por últimos, os deuses olharam para mim e pegaram na minha mão com ternura. Lembro da expressão deles: ela, de vestido vermelho e agora com a girlanda de flores vermelhas lhe cingindo a testa, ele, com a barba volumosa e preta e semblante amigo.

Também me lembro dos sorrisos que me deram: um sorriso sem dentes, um sorriso satisfeito, um sorriso que continha uma longa história. Nossas mãos se separaram, eles começaram sua caminhada para o mundo novamente e eu acordei.

Ribeirão Bonito, 10 de outubro de 2021.




7 de out. de 2021

OH, F3&€$!!! CAÍ NA BESTEIRA DE LER NIETZSCHE DE NOVO!!!

Meu caro, minha cara.

Poderia começar com uma frase impactante, do tipo "só consegui terminar de ler 'Zaratustra' e entender alguma coisa por agora, depois de 15 anos de tentativas frustradas e bem nesse momento de luto, por causa da morte dos meus pais."

Mas acho que seria muito forçado.

Não que essa seja uma afirmação mentirosa. Mas é meio exagerada. Prefiro dizer que conseguir ter lido e entendido alguma coisa do livro daquele louvável doido no momento terrível que estou vivendo agora é, pelo menos, uma coincidência muito grande.

O que me faz pensar que ler loucuras e verdades "cuspidas" na sua cara só farão sentido quando seu senso de sentido "normal" for para o saco a algum tempo.

E isso me leva a cogitar a hipótese que, para loucuras e verdades, seu espírito deve estar fora da ordem para entender. Precisa estar extra-ao-ordinário.

Sendo extra, fora, além da fronteira. Aí você estará no terreno certo (ou melhor: no terreno incerto das possibilidades, dos caminhos, dos medos revelados, do pânico e do ponto de partida).

Você será a carta zero do tarô. O LSD das experiências atuais sobre o uso de psicotrópicos para tratamento de depressão. Será felicidade e angústia por não ter mais seus referenciais de família e emprego. Ou daquilo que você considera como seus referenciais, a pedra angular da sua vida, passado, futuro e caráter.

Será sesta, floricultor amador, dona de casa e da casa. Será atenção,  preocupação, desapego, descanso, esperança, sonhos, pequenas risadas, pequenos agrados e ações pequenas e importantes.

Experimentará tudo. Dormirá e experimentará quase nada. E pensará: "Isso é que é ter tempo para si mesmo?".

Oh, meu caro e minha cara... Durante a dor e na dificuldade de aceitar consolo, caí na besteira de ler Nietzsche de novo!!! E o pior!!! Vou fazer umas tantas outras vezes! Falo isso como uma profecia e como uma sentença!

"Bem aventurados são aqueles que estão dispostos a pirar o cabeção,  pois só assim terão uma chance maior de entender as palavras daquele louco sifilítico!!! Que o caos seja louvado!!!"

"Tapas na cara! É o que nos aguardam! Tapas na cara, viés histórico e conscientização inconveniente e necessária é o que nos aguardam, meu caro e minha cara!"

Tinha medo de romper com o mundo, mas o mundo me rompeu inteira e agora me aparece esse mundo novo, do declínio, construção e conquista, tocando no meu cotovelo com a mão gelada e em brasa. Ele me toca com troça, firmeza e com muita verdade. A verdade que se tatua na pele para se lembrar que apenas quem age aprende e que, para aprender mais - se maravilhar com o novo e se deitar nas plumas da satisfação - faz-se necessário agir, se deixar atingir, se deixar morrer, doer e nascer.

Pois quem se deixa atingir, sentir, doer, morrer, se esquecer e nascer é quem vive de novo e de novo e de novo.

(Com ênfase no "morrer", pois do pó viemos e ao pó voltaremos - e isso não é bíblico ou cármico. É químico)

(...)

Aos poucos, me transformo em pó, nitratos, fosfatos, carbono e buffet de bactéria. Fecho o livro e reflito. Não sobre ele, mas sobre mim. Aos poucos, respiro fundo, pois respirar ainda é coisa inédita. Aos poucos, as palavras se assentam, voam, chocam, morrem e ganham vida.

Aos poucos aceito essa desintegração que me unirá um dia a algo lá na frente.

Aos poucos... voar, pousar, dormir... para depois acordar e ver no que vai dar...

(...)

Obrigada, velho-maluco-que-teve-uma-vida-disfuncional-(de-acordo-com-os-padrões-da-sociedade-da-época). Obrigada por me lembrar que tenho presas, não apenas molares.

E que tenho escolhas.

Eu já havia me esquecido disso.

Ribeirão Preto, 7 de outubro de 2021.