6 de jun. de 2018

A ÚLTIMA SESSÃO DE TERAPIA

Meu caro, minha cara

     Não levo jeito para a Clínica. Desde que antes de entrar na faculdade de psicologia eu sabia disso. Não iria querer clínica de forma alguma.
     Entretanto, é obrigatório o estágio em clínica para obter o diploma.
     Por isso, no quarto ano, decidi encarar logo esse "fardo" e fui clinicar. Não queria clínica com adultos, nem adolescentes. Sobraram as crianças.
     Com elas, a técnica usada seria a ludoterapia. Terapia por meio do lúdico, da brincadeira. Se tudo mais falhasse, pelo menos iríamos brincar, eu pensei.
     Minha primeira paciente estava então com 7 anos e a queixa era de dificuldade no aprendizado. Na verdade, o buraco era mais embaixo.
     Ela tinha uma doença congenita, neurológica, degenerativa e incurável. Essa doença causa a uma lenta paralisia dos nervos periféricos. Por isso, ela tinha dificuldades de locomoção.
     No afã de tornar as coisas mais "fáceis" para aquela vida tão breve e sofrida, os pais não tinham coragem de olhar para o problema de aprendizagem dela. Não queriam que ela sofresse por não aprender como as outras crianças, já que ela já não andava como as outras crianças. Com isso, ela não aprendia, não conseguia acompanhar as lições da escola e, principalmente, não entendia o que havia de tão errado.
     E eu, que nem pensava em clínica, acabei caindo com um caso assim.
     Foi mais ou menos nessa época que eu descobri que ter escolhido psicologia havia sido um erro para mim. Devia ter feito administração.
     Mas... Já era tarde.
     Fiquei 2 anos com esta paciente. Os dois últimos anos da faculdade. Vi ela contar coisas da escola, da família, do problema de locomoção dela. Brincava com ela, conversava com ela, mas não mentia. Acredito que eu tenha gastado toda a minha cota de compaixão desta existência com ela, porque é muito difícil você falar a verdade para alguém que está fudido, mas sem fuder mais ainda com a pessoa.
     E ela só tinha 7 anos...
     Ao final dos dois anos, ela já havia passado por vários médicos, com várias interpretações diferentes sobre sua doença. Uns falaram que era caso de cirurgia. Outra (uma vaca) disse que ela ficaria paraplégica antes de chegar aos 18 anos, apenas baseado no histórico médico e em exame clínico (os pais piraram por causa dessa cretina). Mas finalmente conseguiram achar um médico legal, que lhes deu o diagnóstico correto, esperança e tratamentos para diminuir o avanço da doença.
     Ela já estava com 8 anos...
     E eu já estava convencida que não aguentaria viver disso.
     Aos 9 anos, ela estava pronta para receber alta e eu, estava pronta para me formar. Ela agora admitia seus problemas de aprendizagem e não mais vivia na fantasia de que seus erros não existiam.
     Acredito que "se formar" seja isso: não estou pronta e acabada. Estou pronta para começar a minha formação. No meu caso, fora da faculdade, no dia a dia.
     Na última sessão, eu perguntei o que ela achava da nossa separação. Ela me disse que chegaria em casa, iria para o quarto e que choraria, pois não iria mais me ver. Pela última vez, coloquei ela nas minhas costas e a levei de cavalinho até o pai dela, que estava nos esperando na recepção. Ela me deu tchau e foi embora.
     Eu não esperei até chegar em casa e entrar no meu quarto. Eu chorei ali mesmo, apoiada na parede, sentada no corredor da clínica da faculdade. O zelador me viu e me levou até em casa, pois já era tarde da noite.
     Tive outros pacientes durante esse período e depois, quando trabalhei como voluntária em um projeto social, mas em nenhum deles eu consegui chegar tão a fundo em outra alma quanto naquela menina. Em nenhum momento, seja na clínica ou fora dela, eu toquei alguém como fiz com ela.
     E também nunca havia me deixado tocar daquele jeito.
     Algumas amigas brincam dizendo que não consigo clínica por falta de empatia, não de discernimento. E eu concordo com elas. Mas mesmo não clinicando eu continuo tendo as pessoas como base do meu trabalho.
     Me pergunto, às vezes, onde foi parar toda aquela compaixão que tive pela menina. Imagino que o choque por ver partir alguém que foi tão especial para mim, simplesmente porque nosso tempo juntas havia acabado, inibiu o cultivo de qualquer coisa parecida por aqui.
     Quero muito que minha carreira tenha sentido. Não só para mim, mas também para outras pessoas. Quero ter aquela sensação, novamente, de ganhar, mesmo sabendo que irei perder em seguida.
     Mas como é difícil suportar...

Ribeirão Preto, 6 de junho do 2018