23 de abr. de 2019

A FELICIDADE É UM BALÃO ROSA...

Meu caro, minha cara,

A felicidade é um balão cor de rosa.

Quem me disse isso foi a pacientinha de 3 anos que está na sala de espera comigo.

Eu, de óculos escuros, para tentar me esconder da dor e do enjôo na escuridão.

Ela, vestida de rosa, com chinelo rosa e um balão rosa cheio de gás hélio da Masha (de "Masha e o Urso") gritando pra mãe no outro lado da sala de espera "ÓIAQUÍ!!! A MÁXA!!!"

Ganhou o balão do avô.

Em comum, só a pulseirinha branca no pulso.

Nem mesmo a espera pelo nosso número podemos compartilhar...

Ribeirão Preto, 23 de abril de 2019

21 de abr. de 2019

SAIAS

Meu caro, minha cara,

Minhas lembranças mais antigas tem a ver com minha família e minha escolinha.

Na escolinha, as meninas usavam uma saia do tipo envelope, com babados xadrez, presa com um laço, toda na cor azul "tom estojo dos anos 80". A camiseta era branca e na saída da escolinha havia um pasteleiro e garapeiro.

Lembro do enorme parquinho com chão de areia e das brincadeiras com os meninos. Sim, meninos. Batia cabelo adoidado, virava a mãozinha, quebrava o pescoço pro lado e decidia quem iria brincar de pega pega comigo. Óbvio dizer que eu fazia eles correrem atrás de mim.

A legítima histeriquinha do parquinho, no auge dos meus quatro anos de idade.

Com seis anos, fui fazer testes de admissão para a primeira série. Estava entre o colégio em que meus primos estudavam e outro, de freiras. Sonhava com o colégio dos meus primos: eu os veria todos os dias e aprenderia a tocar piano.

Fui para o outro, aonde a saia era plissada, na altura do joelho e podia ser em duas cores: preto com branco ou marrom cor "de bosta".

Ah! Só estudavam meninas, programadas para amar Jesus - e ninguém mais.

Foram quatro anos de lavagem cerebral. Depois, fui para o colégio que meu irmão estudava.

Deu merda... Lá ninguém tinha o cérebro limpo com o "alvejante da cristandade".

De lá para cá, tentei muita coisa: cachaça, terapia, melancolia, abstinência.

Mas... Bater cabelo que é bom, ainda não consigo...

Ribeirão Preto, 21 de abril de 2019.

14 de abr. de 2019

PRETO AZUL ROSA VERDE BRANCO

Meu caro, minha cara.

Faz anos que guardo essa imagem.

Estava em uma excursão do colégio (não me perguntem qual a série e qual o destino, pois não me lembro) e fomos para São Paulo.

Quando chegamos na cidade, passamos por todas as ruas, avenidas e largos famosos, mas que eu, por ignorância, desconheço até hoje.

Olhava o trânsito, os prédios, as estátuas, fazendo imagens mentais num tempo que não havia câmeras digitais e celulares poderosos. Imagens guardadas na memória como flores colhidas que um dia morrem.

Olho para a direita e, entre um prédio de kitnets e outro, tenho uma revelação.

Uma casa. Muito antiga. Cuja idade é denunciada pelos adornos em rococó de suas laterais, portas e janelas, pelo pretume de suas paredes e pelas plantas nascidas em suas rachaduras.

Uma casa com portas duplas e sem grades nas janelas.

Ao lado, um pátio, transformado em jardim de samambaias apoiadas numa parede rosa choque.

Quem as alimentava era uma velha preta, de vestido azul claro, com um lenço branco na cabeça. Armada de um regador e chinelos, ia regando as samambaias como se isso, naquela cidade, fosse normal.

Essa cena se passou muito rápido: a velha preta, da casa preta, saindo para regar as samambaias verdes penduradas num paredão rosa, vestida de azul e lenço branco, carregando água e histórias em sua memória de flores que um dia ficarão murchas e morrerão.

O ônibus não parou para isso. Ninguém prestou atenção. Ele continuou a levar todos a seu destino esquecível. Eu continuo a levar a preta velha comigo.

Ribeirão preto, 14 de abril de 2019



13 de abr. de 2019

PÁSSARO NO SACO DE LIXO

Meu caro, minha cara,

Hoje morreu um pássaro na sacada de casa. Era uma rolinha.

Ela veio voando e não percebeu que havia dado um mergulho contra uma porta de vidro. Morreu instantaneamente, com o pescoço quebrado.

Eu ouvi o baque. Também meu marido. Ele me chamou no quarto para me mostrar a ave morta.  Fui até a sacada e toquei na ave: ainda quente.

A reação dele foi de lamentar por ela e voltar a sentar no sofá para assistir TV.

A minha foi pegar um saco de lixo e ir buscar a ave.

Ela ainda estava quente.
Com olhos semicerrados.
Com o corpo mole.
Com as penas macias.

Coloquei a rolinha dentro do saco de lixo, dei um nó e coloquei na lixeira. Segunda feira o lixeiro vem e recolhe tudo.

(...)

Há sempre uma porta de vidro para tudo...

10 de abr. de 2019

Tim Sibles - First kiss

Tim Seibles - First Kiss

(muito, muito lindo...)

Her mouth
fell into my mouth
like a summer snow, like a
5th season, like a fresh Eden,
like Eden when Eve made God
whimper with the liquid
tilt of her hips—
her kiss hurt like that—
I mean, it was as if she’d mixed
the sweat of an angel
with the taste of a tangerine,
I swear. My mouth
had been a helmet forever
greased with secrets, my mouth
a dead-end street a little bit
lit by teeth—my heart, a clam
slammed shut at the bottom of a dark,
but her mouth pulled up
like a baby-blue Cadillac
packed with canaries driven
by a toucan—I swear
those lips said bright
wings when we kissed, wild
and precise—as if she were
teaching a seahorse to speak—
her mouth so careful, chumming
the first vowel from my throat
until my brain was a piano
banged loud, hammered like that—
it was like, I swear her tongue
was Saturn’s 7th moon—
hot like that, hot
and cold and circling,
circling, turning me
into a glad planet—
sun on one side, night pouring
her slow hand over the other: one fire
flying the kite of another.
Her kiss, I swear—if the Great
Mother rushed open the moon
like a gift and you were there
to feel your shadow finally
unhooked from your wrist.
That’d be it, but even sweeter—
like a riot of peg-legged priests
on pogo-sticks, up and up,
this way and this, not
falling but on and on
like that, badly behaved
but holy—I swear! That
kiss: both lips utterly committed
to the world like a Peace Corps,
like a free store, forever and always
a new city—no locks, no walls, just
doors—like that, I swear,
like that.

8 de abr. de 2019

CAÇULA

Meu caro, minha cara,

Quando eu era criança, costumávamos passar as férias na casa da minha vó e minha tia, no interior de SP. Gostava muito das férias, pois era a oportunidade de brincar na rua, com outras crianças. Em Santos, não tínhamos a oportunidade de fazer isso.
A rua tinha muitos meninos e poucas meninas. Brincar com os meninos era muito legal, ao contrário das meninas. E o motivo era claro: meninos querem se divertir; meninas querem ver quem é melhor que quem.
Posso estar sendo injusta, mas esta é a leitura que faço daquele grupo, naquele tempo.
Em um dos períodos de férias, apareceu um menino que não era da nossa turma: ele era mais novo e morava numa casa ao final da rua. Não sei como ficamos amigos, mas ele era muito divertido. Ele era tão ingênuo, tão inocente, que quase me senti no papel de irmâ mais velha.
Quase.
Ele gostava de brincar com fantoches e de ir pescar com o avô. Me olhava admirado por eu ser mais velha e saber mais coisas do que ele. "Quando você chegar na minha série você vai saber".
Um dia, ele voltou de uma pescaria com o avô e com o pai e eu o chamei para brincar com a gente. Ele foi, mesmo cheirando a peixe. Os meninos não ligaram muito (afinal, todos já estavam encardidos de tanto brincar), mas as meninas fizeram muito pouco caso do menininho.
Ele ficou tão sentido que deixou a rua quase chorando. E, quando eu fui atrás dele, as meninas passaram a ridicularizar a mim, dizendo que eu estava tomando as dores do meu "namorado".
No auge dos meus 9 anos de idade, eu travei. Não queria que meu amigo fosse embora, da mesma forma que eu não queria virar motivo de chacota na rua. Deixei ele ir embora, com remorso.
Nos dias seguintes, ele não me chamava mais para brincar com seus fantoches. Quando eu passava em frente a casa dele, via que ele brincava sozinho na garagem de casa. Olhava para mim e virava o rosto.
Ele devia ter uns 7 anos, no máximo.
As férias acabaram e vieram outras. Fiquei sabendo que entre o intervalo de um ano, a família se mudou para outro bairro. Mesmo assim, nas férias, passava em frente a casa para lembrar do meu amigo humilhado.
Por fim, crescemos todos. Nunca mais vi ninguém da rua - e as opiniões que, antes, eram tão importantes, viraram pó.
Pena que os remorsos ficaram...

Ribeirão Preto, 08 de abril de 2019

5 de abr. de 2019

TOCO

Meu caro, minha cara,

(demoro para encontrar as palavras certas. Aquelas que vão expressar com fidelidade o que me perturba. Não que eu não tenha vocabulário; falta coragem para me expor. Eis o desafio: revelar o que penso sem me expor... Impossível, não?)

Nos desenhos animados do passado, eu via muitos que falavam sobre circo. Neles, sempre havia um elefante imenso preso a um toco de madeira, atado a uma corda de laço frouxo. Quando via isso, eu me perguntava "por que o elefante não sai dali? é só um toco!". Mas não fazia a pergunta em voz alta. Então, ficava sem respostas...
Depois de muito tempo, descobri como isso era possível: quando um elefante nasce e decidiram que ele seria domesticado para ajudar em algum tipo de atividade humana (transporte, colheita, entretenimento) ele é atado, ainda bebê, a um tronco de árvore imenso, muito mais pesado que ele. O elefantinho tenta se desvencilhar do tronco, mas não consegue: ele só consegue andar até o limite da corda ou corrente que lhe prenderam.
Com o passar do tempo, o elefantinho perde as esperanças de fugir. Associa o tronco e a corda/corrente ao limite de sua liberdade. Ao crescer, cresce sua convicção de impotência. Não é mais necessário encontrar um tronco maior. Não é mais necessário correntes mais fortes. A prisão foi introjetada no comportamento do animal.
O toco venceu.

(...)

Imagens assim não precisam de tradução. Elas falam por si só. Não há necessidade de falar que nós, seres pensantes, "raciocinantes" somos, antes de tudo, animais. Que a natureza humana é acolhedora e cruel ao mesmo tempo. Que somos o receptáculo da esperança de melhores ações para o futuro de gente que não vê mais futuro em si. Que somos atados a elas como troncos muito, muito pesados...
É necessário fazer essas alusões?
Confesso que hoje as minhas perguntas mudaram e o desafio é dizê-las em voz alta. Pelo medo. Pela falta de acalanto. Pela falta de confiança (em mim e em quem veio antes de mim).

(...)

Até o momento o toco de madeira vence.
E estou farta de dizer "até o momento" em cada frase...

Ribeirão Preto, 05 de abril de 2019.