26 de ago. de 2012

Depeche Mode - Enjoy The Silence


"Tudo o que eu sempre quis
Tudo o que eu sempre precisei
Está aqui em meus braços
Palavras são bem
Desnecessárias"

Boris Pasternak


“LEMBRA-TE DE ESQUECER”


(Immanuel Kant)

Meu caro, minha cara,

                Nada melhor do que a insônia matinal para nos obrigar a fazer alguma coisa produtiva. Por isso, hoje eu escrevo.
Notei que este mês eu fiquei de observadora de um embate entre minha cabeça e meu computador: era sobre o Esquecimento. Geralmente, o seu verso é o mais comentado e querido (a Lembrança), mas é natural que eu me ponha a falar sobre algo assim, pois o Esquecimento é um elemento presente na minha trajetória.
Desde que eu era criança, eu sou esquecida. Calma, meu caro e minha cara, eu não era abandonada nos cantos. Eu era desmemoriada. Cabeça de vento. Brincava com as coisas e esquecia onde as havia deixado quando terminava a brincadeira. Esquecia das coisas que minha mãe falava para eu fazer. Esquecia dos dias das provas, esquecia onde colocava os cadernos. Esquecia das coisas que me contavam. Esquecia.
Não sei até que ponto isso era o normal de uma criança, mas sendo normal ou não, isso incomodava muito. Não só aos outros, mas principalmente a mim. Era muito ruim ser considerada como uma pessoa que não se lembrava porque não se importava. Esse é um argumento comum nesses casos: a gente só se lembra do que é importante para gente. Mas... E quando era importante e, mesmo assim, esquecia?
Só sei que cresci com essa sombra ao meu lado. E me agoniava muito saber que, a qualquer momento, algo poderia ser deixado para trás. Ficava a me perguntar se eu era mesmo uma pessoa tão alheia ao que era importante para o outro. Praticamente um autismo. Quando percebia era porque alguém havia me chamado a atenção para determinada coisa ou assunto. Muito difícil descobrir ou perceber algo por si própria.
À medida que fui crescendo e fui saindo do ambiente familiar, eu vi o quanto isso era terrível. Chegava ao ponto de esquecer de amizades que havia feito no ano anterior. Nomes e rostos eram enigmas para mim - são até hoje. Terrível quando alguém chegava e dizia: “Lembra de mim?”. Não. Não lembrava. A vida no colégio exigia um pouco de esforço, não só para me lembrar das matérias, mas também para me lembrar do dia-a-dia.
Para me defender, eu comecei a criar rotinas. Padrões. Esquemas. Roteiros. Listas. A repetição se tornou o receptáculo da memória. “A memória diminui, se não for exercitada”, falava Marcus Cícero. Se eu me treinasse a fazer determinadas coisas, numa determinada sequência, eu poderia deixar de ser tão relapsa (relapsa: outra palavra que me apelidavam). Começou a dar certo: as coisas pararam de sair correndo do lugar com suas “perninhas” - incluindo as lembranças. Minha técnica não chega a ser um Transtorno Obsessivo Compulsivo, mas estava quase lá!
                E então, surgiu uma nova pessoa, que busca controlar o que está ao seu redor para se blindar da falta de memória... Essa nova condição exige um belo esforço. Tenho que ter lembretes, imagens, cadernos, coisas além da rotina. É meio chato, confesso, mas é melhor do que ser acusada de não se importar com os outros e com as coisas dos outros...
                Porém, como tudo o que é em excesso é ruim, eu percebi que havia eu me aprisionado em outra gaiola: a da Memória. Era refém dela. No afã de me lembrar de tudo, para não deixar nada nem ninguém com o estigma de “abandonado”, eu passei a encarar cada minuto do dia como um item a ser identificado, descrito, catalogado e guardado, de maneira fácil para o rápido retorno à consciência. Não deu certo. Desejava acumular Lembranças, mas com elas eu acumulei Culpas, Ressentimentos, Mentiras, Equívocos. “Ah! Memória! Inimiga mortal do meu repouso!”, dizia Dom Quixote.
Sendo assim, nova empreita se abre: reaprender a esquecer. Na verdade, não era esquecer o que eu deveria fazer, mas Selecionar. Utilizar a peneira do Discernimento para decidir o que deixaria passar e o que deveria reter. E como reter. Onde reter. Quando resgatar e em quais condições. O que esquecer, sem o fantasma da Culpa e do Desmerecimento.
Essa faxina mental cria espaço para o novo, libera a mente para o que antes não existia, ajuda a compor a própria história e a entender que ela um dia se dissipará, como tudo o que há nesta vida...
               
                Como você deve ter visto, meu caro e minha cara, o texto de hoje está cheio de citações - incluindo o próprio título. Quem acompanha o blog sabe que ele é composto pelos ensaios mensais, pelas músicas que viram minha trilha sonora e pelos pensamentos de grandes homens e mulheres que inspiram ou resumem cada dia. Eis uma das funções deste espaço: servir de memória, servir de resgate, servir de reflexão, servir como espaço seguro para esquecer e se lembrar de tudo o que vem a ser importante - e o que deixa de ser importante com o passar do tempo. Gabriel Garcia Marques disse uma vez que “aquele que não tem memória arranja uma de papel”. Aqui é o meu papel.

                (quão maravilhoso é poder deixar algumas coisas para trás em segurança...)

Ribeirão Preto, 26 de agosto de 2012.


24 de ago. de 2012

Guns N' Roses - Live and Let Die



"O que importa para você?
Quando você tem trabalho a fazer
Você tem que fazer direito
Você tem que mandar os outros pro inferno"

15 de ago. de 2012

Air - Sexy Boy


"Eu também um dia, serei belo como um Deus"

(para aqueles que acham que um dia isso será importante...)

Maria Colasanti - A gente se acostuma (declamado por Antônio Abujamra)


"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma."

(1972)

Andre Malraux


14 de ago. de 2012