25 de dez. de 2020

O CAMINHO

 Meu caro, minha cara.


Fins de ciclo são apenas uma parte do ciclo. E se engana quem acha que todos são do mesmo tamanho e que, do mesmo modo, só pode haver um ciclo por vez.


Percebi isso enquanto caminhava com meu pai a um açude próximo às chácaras. Ele, com o joelho estourado, se apoiando em um cajado-bengala, pedindo cuidado para não pisar em cocô seco e com as jararacas. Eu, de tênis nos pés e câmera nova na mão, indo praticar fotografia.


Vendo e sentindo a dor dele, lembrei da minha. Houve um tempo em que eu sentia dor e não tinha propósito algum. Havia me entregado. O que me ajudou foi resgatar um desejo antigo de me enfiar no meio do mato e tirar fotos com uma câmera em punho. Cinco anos depois, aqui estou eu, fazendo exatamente isso.


Percebi que isso foi o fechamento de vários ciclos. Quando, sem querer, apaguei quase todas as fotos tiradas no açude, apenas pensei "paciência". Falar isso também foi o encerramento de mais outro tanto de ciclos.


Quanto ao meu pai... Um grande ciclo se fechou para ele esse ano. E o término não foi nenhum evento em especial. No mesmo momento que eu percebi isso, percebi outra coisa: nada de novo entrará no lugar. 


Triste, sabe? Ver isso. 


Para ele, triste foi ver que eu pisei sem querer em cocô seco na volta do passeio.


Mococa, 25 de dezembro de 2020.




Liev Tolstói


 

5 de dez. de 2020

PIÈCE DE RÈSISTANCE

 Meu caro, minha cara.


Por causa da dor que senti pela partida da Zuleica, abandonei tudo, inclusive a mim.


Nesse abandono, a minha primeira orquídea quase se foi também.


Nenhum ser vivo merece sofrer por causa da tristeza do outro...


...e nenhum resgate deve se propor a trazer mais do que realmente pode conseguir...


Ribeirão Preto, 5 de dezembro de 2020




25 de nov. de 2020

Kiss - Ace Frehley - Fractured Mirror


 

FRATURA EXPOSTA

Meu caro, minha cara.


Não há dúvida de que somos seres arrogantes. Pelo menos, não para mim. E mesmo sem saber, sem querer o somos, diga-se de passagem.

Logo que emito isso, há sempre um ofendido de plantão. Fala-se em modéstia, humildade, até servidão. Mas é isso que o arrogante faz, não é verdade? Arroga para si algo que... se tivesse de fato, não precisaria abrir a boca.

Não temos o dia e hora marcados para encontrar o amor, pedir desculpas, dirigir com segurança, criar responsabilidade, perder a virgindade, tirar 10 na prova, dar o primeiro beijo - ou o último, brigar, achar emprego, oferta no mercado, comprar um carro, uma casa, um picolé. 

Arrogantes, planejamos a próxima compra, a próxima meta, a próxima festa, o próximo jogo como se não houvesse amanhã. Ou, melhor dizendo, como se sempre houvesse amanhã.

E, enquanto os protestos ainda estão mudos, aproveito o vácuo para perguntar quem apregoa finitude, fracasso, limite?

"Mas também temos esperanças!", grita a pessoinha que quer um mundo melhor. E é o que também quero. Mas de esperança em esperança, quantos não atingem apenas a metade da expectativa de vida, ao invés de atingir as expectativas para a própria vidas? E por quê? Porque apregoamos a nós o tempo e o poder, deuses que nos ceifam enquanto se fazem de escravo.

"Mas então de nada adianta?", grita a pessoinha que se frustra com o estouro da sua bolha de sabão. Eu devolvo a pergunta: "Precisa?".

Precisamos mesmo de tanto?


Ribeirão Preto, 25 de novembro de 2020




31 de out. de 2020

O CANCERIANO AMARELO

 Meu caro, minha cara.


Estimou-se que ele tinha um ano quando o adotamos. Quem falou isso foi a veterinária que o examinou.


"Deve ter nascido em outubro".


Como a história dele era um mistério nesse suposto um ano de vida, escolhemos o dia 10 como data de aniversário.


Ou seja, um libriano.


Durante três anos, o Juvenal foi o rei da casa. Todos os mimos e carinhos e preocupações eram por ele. A "briga" era pra saber de quem ele gostava mais. Como eu que sempre o levo no veterinário, dou ração, o põe no colo para ninar, passo minutos infindáveis fazendo carinho e coçando sua cabeça, é natural que ele prefira a mim do que ao meu marido.


Mas a chegada da Zuleica fez o mundo dele ruir.


Ele olhava para mim como um "que" de surpresa, indignação, mágoa e raiva.


Tudo por causa de um filhote que, hoje, está fazendo tratamento para a bronquite.


Ao invés de partir para ignorância, Juvs decidiu pagar de passivo agressivo na história. Ele não percebe, mas cada vez que ele se lança para cima dos armários ou chora para sair de casa e dar o seu rolê, ele dá mais espaço para que a Zuleica domine seu território.


Ele sofre, chora, não concorda com um outro gato em sua casa, mesmo que o gato em questão seja a filhote mais miúda da ninhada.


Sua mágoa me fez pensar sobre a minha: eu sofro, mas abro mão. Mesmo de coisas que eu quis muito outras vezes, mesmo assim abri mão.


Como isso é infantil e inútil...


Por isso que eu acho que ele é como eu: melancólico com as mudanças, achando que se fazer de difícil é o melhor jeito de garantir que alguém se sinta culpado por tê-lo magoado.


Mas a mágoa é minha. É a forma que escolhi reagir por muito tempo.


Com 13 anos de terapia nas costas, entendo que a mágoa não leva ninguém a ligar algum.


(...)


Mas o Juvenal não faz terapia. Não sabe falar português e tudo o que podemos fazer é abrir espaço para sua angústia e deixar que ele aprenda - por si só - que a vinda dela para nossa família foi pensando mais nele do que em nós mesmos.


(...)


Pelo sim, pelo não, vou mudar a data estimada de nascimento dele: algum dia de junho ou julho, dentro do primeiro decanato. Se o mundinho dele foi para as cucuias, pelo menos que a gente deixe alguma coisa certa...


Ribeirão Preto, 31 de outubro de 2020.




28 de set. de 2020

BOA NOITE, TEMPESTADE

 Meu caro, minha cara.


Apareceu do nada na minha frente. "Tenho sede". Desço da esteira e ele vai, com copo na mão, até o bebedouro.


Um, dois, sei lá quantos copos depois, ele volta com um copo cheio para mim.


"Vamos dar uma volta hoje?"


Eu disse que sim. O shampoo, a camisola e o jejum intermitente que esperassem: hoje a noite é de chuva.


Pegamos os capacetes e fomos. Eu, sonhando acordada. Ele, vivendo o sonho de metal do Vital. Em comum, amamos a chuva, o vento, o raio e o trovão. Esses deuses antigos que teimam em não serem domesticados pela mão inepta de quem mal vive um século.


Ganhamos a estrada e, com ela, as cenas mais lindas: relâmpagos disfarçados pela chuva distante eram apenas luzes aconchegantes e sedutoras. Caiam no chão, como a chuva. Caiam de um lado ao outro, como o vento.


Com poucos carros e caminhões na estrada, ganhamos velocidade. Pensamos sentir os primeiros respingos da chuva. 


E sorrimos dentro de nossos corpos...


A noite continua, assim como os trovões. E lá fomos nós, noite adentro, caçar mais raios pelo céu, como crianças caçando vagalumes no quintal...


Ribeirão Preto, 28 de setembro de 2020.




19 de set. de 2020

O SONHO DA TORRE

 Meu caro, minha cara.


Percebi que meus sonhos ficaram mais ricos depois que a medicação da enxaqueca foi acertada.


Mais ricos e repetitivos.


Em um deles, sonho com a seguinte história: uma moça, já adulta (e, não me pergunte por quê, mas ela era a cara da Milla Jovovich no primeiro Residente Evil), me contava como a mãe dela morreu. 


E, como falei antes, esse é um dos sonhos que vêm se repetindo.


Ela me chama por um jardim gramado e só paramos de andar quando chegamos ao lado de uma torre de um convento. Ela aponta para a terceira janela da torre e diz "minha mãe caiu dali quando tinha quatro anos".


Diz da mesma forma que uma pessoa diz as horas.


Ela continua contando: "quando era pequena, eu vi essa torre e queria subir. Como ela é de tijolinhos, para mim foi como uma pequena escada. Minha mãe me viu e começou a gritar, desesperada. Na época eu não sabia porquê do desespero dela. Então, como eu não descia, ela subiu. Quando chegou na terceira janela mais alta, ela perdeu o equilíbrio e caiu. Morreu na hora."


Falava como se tivesse perdido um cachorro muito velho para algum câncer canino.


Hoje, tive o mesmo sonho, mas sem a moça do filme ruim.


Sonhei que entrava na intimidade de um viúvo. Um homem magro (não magrelo), com bigode e cabelos bancos. Usava óculos de grau e eu sabia que ele era uma pessoa elegante pois apareceu de terno e colete.


No passado, ele teve uma esposa e filha, mas com a morte da esposa, ele não quis saber muito da filha e decidiu que nenhuma mulher teria seu coração. Por isso, passou a ter relacionamentos só com homens.


No interior do quarto, uma porta do armário reunia algumas roupas da falecida mulher: blusas azuis com estampas de florzinhas e muitos broches de congregações cristãs.


Quando ele me viu pegar uma das blusas dela, eu soube o que aconteceu.


O homem elegante, a mulher devota e a filha moravam numa grande casa que, no passado, era um mosteiro. Nos fundos da propriedade foram construídos alguns barracões para abrigar itens de mercearia, galinheiro, horta, entre outras coisas.


Um dia, enquanto a esposa lavava roupas no tanque, a filha de quatro anos subiu no telhado do galinheiro com a ajuda de uma escadinha de pintor. De lá, pulou para o telhado da oficina e, daí, para o telhado do mosteiro transformado em casa grande.


Ao perceber que a filha estava no telhado, a mãe se desesperou. Gritava para a menina descer, mas a garotinha ria. Não com escárnio ou birra, mas de felicidade e emoção pela aventura. A mãe, então, decidiu subir nos telhados para alcançar a filha. 


Quando ela atingiu o telhado do mosteiro, ela quis seguir o mesmo caminho que a filha, sem considerar que ela - uma adulta - era muito mais pesada.


Andando pela beirada do telhado, algumas telhas se partem e ela vai de uma vez no chão. Ao fundo do grande terreno que servia como quintal e área de serviço, havia uma torre carcomida de igreja (a antiga igreja do mosteiro). Por causa da falta de conservação, a torre do sino tinha duas pequenas janelas e um buraco, grande o suficiente para uma criança pequena passar.


Era lá que a menina queria chegar.


Nessa hora, escuto os vizinhos do apartamento debaixo rindo e praticamente gritando uns com os outros. Era 3:03h da madrugada.


Não consegui dormir depois disso...


Ribeirão Preto, 19 de setembro de 2020.




9 de set. de 2020

O TANQUE VERMELHO

 Meu caro, minha cara.


Quando falta água em casa, por algum motivo só causado pela física ou por algum vizinho folgado, o jeito é armazenar água em baldes.


Quando isso acontece, lembro na hora do apartamento da Ponta da Praia.


Lá sempre faltava água nos períodos de temporada: férias, feriados prolongados, finais de semana com sol, finais de semana sem chuva (às vezes). Sempre quando os turistas vinham aproveitar um tempo na praia, mesmo que fosse uma praia de areia dura, mar escuro e de higiene duvidosa.


(Pensem comigo... vivi lá nos anos 80... não era como é agora...)


Nessas ocasiões, minha mãe enchia baldes com água e – não me perguntem por que – meu irmão e eu tomávamos banho no tanque vermelho que havia na área de serviço.


Para nós, crianças, era fácil: a gente era posto lá, de touca e tudo, usávamos uma esponja com o sabonete para nos limparmos e, depois, nos jogavam água com o canecão para tirar a espuma.


Muitas vezes, minha mãe esquentava a água no fogão, para que não sentíssemos tanto frio. Mesmo assim, reclamávamos da água ora muito quente, ora muito fria.


Em resposta, minha mãe sempre dizia para que parássemos de frescura.


Hoje, com as leis da física dando suas caras por aqui, tive que pegar um balde para tomar banho. Com esponja, sabonete e caneca, tomei um banho frio e cheio de lembranças.


Foi o suficiente para me sentar aqui e começar a escrever sobre os banhos naquele tanque vermelho.


E o suficiente para me lembrar que não me criaram para ser fresca.


(e sobre isso, eu só tenho a agradecer)


Ribeirão Preto, 09 de setembro de 2020





Epíteto


 

30 de ago. de 2020

MARÉ NADA

Meu caro, minha cara.


O solitário ipê amarelo se ergue sobre o campo forrado de palha. Vejo isso enquanto o sol bate no meu capacete e o vento tenta destruir a minha trança. 

Os tucanos voam longe dos gaviões e urubus, mas cavalos e burros dividem as poucas sombras no pasto como iguais.

As vacas passeiam vagarosas por entre as palmeiras de buriti, naquela fazenda com a casa grande, os currais e as casas de colônia destelhadas.

Chegamos cansados na cidade que todos dizem ser "uma beleza", mas ao final do caminho, não queríamos beleza: queríamos sombra, comida, descanso.

Não tinha nada disso que prestasse.

Perto do anfiteatro, paramos numa sombra pequena, enquanto via os cardumes de peixes passeando na praia interditada. Por um momento, pensei que as pedras aparentes estavam assim por causa da maré baixa, mas numa represa não existe maré baixa ou alta. Também não tem onda. Aliás, elas só se formam quando alguma lancha passa. Aí até dá pra sonhar com ondas quebrando na praia.

"Não gosto desse barulho".

"Que barulho?"

"Esse aí, de onda quebrando. Prefiro lago, lagoa, represa, com água calminha, para entrar e se refrescar, andar de caiaque sem medo de levar caldo".

"Ah... Eu já gosto é do mar. Esse barulho de onda quebrando é lindo! Fora o cheiro... Eu tenho saudades do cheiro".

Concordamos em discordar. Eu acho graça. Não precisamos concordar com tudo para nos darmos bem. E tá tudo bem.

Porém, estaria muito melhor se a água fosse salgada, o cheiro fosse de maresia e houvesse maré...


Rifaina, 30 de agosto de 2020.



26 de ago. de 2020

"PROMETO ORGASMO!"

 Meu caro, minha cara.


Partindo do princípio que estou numa fase saudosista e intimista, me pego pensando no passado e me deparo com a seguinte situação.


Era 1998 e eu tinha 16 ou 17 anos. Estava no laboratório de eletrônica do colégio e, na minha bancada, estava a minha melhor amiga e o cara que viria a ser seu marido. Na bancada atrás da gente tinha o cara que me deu meu apelido, o cara que faz aniversário no mesmo dia que eu e o cara que fritou o cérebro de tanto cheirar cola.


Pois bem: a aula estava um saco e um milagre estava sendo operado alí, porque eu estava conseguindo fazer os exercícios junto com o povo. Terminamos os exercícios com os resistores e ficamos conversando os seis. 


Papo vai, papo vem e, como todo bom grupo de adolescentes à toa, o assunto descambou para sexo. 


Na época, tanto a minha amiga quanto eu éramos virgens, e a gente tinha a ideia que a nossa primeira vez seria uma coisa legal, com alguém que a gente gostasse, etc. Sabendo disso, os meninos (o que faz aniversário junto comigo e o que fritou o próprio cérebro) começaram a usar todas as cantadas idiotas que os homens dão para "se dar bem" com a gente.


"Prometo ser carinhoso..."

"Vou com cuidado..."

"Se quiser vai ser só a cabecinha..."


E rimos à larga!


Até que chegou o momento em que não haviam mais "argumentos" a serem dados. Foi nessa hora que o cara que fritou o cérebro praticamente gritou:


"PROMETO ORGASMO!"


Aí o negócio desandou de vez: o cara que faz aniversário junto comigo protestou, dizendo que é impossível, pois a mulher tem que conhecer o próprio corpo, que tem que fazer de um jeito XYZ para não traumatizar, porque "teve uma vez que eu peguei uma garota..."


Já o cara que fritou o próprio cérebro disse que "sempre conseguiu satisfazer todas as mulheres que estiveram com ele", e a tréplica já foi logo um "orgasmo fingido não vale" e o nível só desceu mais e mais.


Minha melhor amiga, o cara que viria a ser marido dela, o cara que me deu meu apelido e eu ríamos do absurdo daquela cena.


Hoje, pensando nela com a distância do tempo, da experiência e da memória, eu penso que meu riso não era só porque essa foi uma história engraçada, mas porque foi a primeira vez que eu pensei que alguém de carne e osso poderia compartilhar um momento tão importante quanto a descoberta da própria sexualidade.


Na época eu não entendia o que eu entendo agora.


Porém, quando chegou o momento, eu fugi e não vivi isso com alguém realmente especial...


Ribeirão Preto, 26 de agosto de 2020.


16 de ago. de 2020

O PÁSSARO DESCONHECIDO

 Meu caro, minha cara.


Este mês eu fiz a minha primeira aplicação com foco na minha aposentadoria. Também conversei com uma amiga sobre o papel da arte no autodescobrimento e ouvi um podcast sobre os efeitos da explosão do Cracatoa no mundo. E hoje eu fiquei assistindo vídeos sobre finanças e lendo artigos em jornais.


Enquanto lia um sobre autocompaixão no quarto cheio de penumbra e ar frio, eu percebo que há um piado do lado de fora.


É um belo canto, que infelizmente parou por causa de um gavião que grasnou aqui perto.


(...)


(Agora que o gavião passou, o piado bonito voltou, mas muito tímido)


(...)


Obrigada pelo piado, pássaro. Você me lembrou que a produção humana não é a única produção que vale nesse mundo...


Ribeirão Preto, 16 de agosto de 2020.



1 de ago. de 2020

AS BELEZAS

Meu caro, minha cara.

Uma das coisas que mais me chamou a atenção quando conheci o Congresso Nacional foi a parede de azulejos de Athos Bulcão que fica entre o Salão Verde e Azul.

O painel é composto por três padrões de azulejo. Mais nada. Simples assim. Colocados ao acaso, sem ter lado de cima ou de baixo, direita ou esquerda. O resultado daquele caos é belo e natural. Se fosse planejado, seria chato.

Pensava, maravilhada, como ele teve essa ideia inédita...

Muito tempo depois, num documentário sobre pássaros, estudiosos revelaram o que descobriram sobre a revoada de algumas espécies. Vocês sabem do que estou falando... Aquela revoada mágica, randômica e perfeita. Aquele balé aéreo e perfeitamente coordenado pelo acaso.

O que eles descobriram? Três regras básicas de orientação, de acordo com o movimento dos seis indivíduos mais próximos. E é isso que define o movimento de centenas de pássaros: três regras básicas.

Daí eu percebi que a ideia de Athos não era inédita. É uma regra natural, caótica, simples.

Deve ser por isso que eu acho beleza nesses três lugares: em lugares naturais, em lugares simples e em lugares caóticos.

Lugares produzidos pela natureza do mundo e pela natureza dos homens.

Para o bem e para o mal.

Ribeirão Preto, 01 de agosto de 2020.


19 de jul. de 2020

MUTANTE...

Meu caro, minha cara.

Eu tenho sorte de olhar para o céu escuro e ver estrelas. Em Santos, quando tinha sorte, eu via a lua por entre as nuvens.

Nas noites em que o céu estava limpo, ele parecia apenas um pano preto refletindo as luzes dos postes, como se um pano preto refletisse alguma coisa.

Mas nos dias de céu limpo, tanto lá quanto cá, fica bom sair de casa e ver os contrastes: aqui o azul vai bem com o verde da cana, com o amarelo do milho seco, com o vermelho da terra. Lá, o azul era mais bonito que os prédios da orla, a areia preta, a água escura.

Antes do anoitecer, as cores mudam. Lá, sempre ficava laranja. Aqui, muitas vezes é rosa. E ao final, estrelas. Muitas estrelas...

Ribeirão Preto, 19 de julho de 2020.


14 de jul. de 2020

A VIDA É ASSIM...


Meu caro, minha cara.

...a vida é assim, Pequena: você olha para uma calçada e vê um homem ganhar a vida vendendo carvão na rua feito com madeira não certificada. Enquanto isso, a mulher fica sentada num banquinho debaixo de uma árvore e o filho mais novo empina pipa ao lado do poste...

...você olha em seguida e outro garoto de sete anos joga bola descalço na rua, com a pele de chocolate e o cabelo descolorido igual jogador de futebol com gosto duvidoso de moda...

... vê a mulher de máscara no ponto de ônibus, respirando fundo para aliviar o dia, para aliviar a rotina, para aliviar os músculos e sonhar com um assento livre na circular, antes de chegar em casa...

...olha para dentro da farmácia e imagina o que as pessoas compram: antibiótico, camisinha, esmalte, leite em pó, álcool gel, ansiolítico, farmacinha, kit ressaca, enquanto rezam para que a mendiga com o bebê do lado de fora esqueça que pediu a cada um deles um pacote de fralda...

A vida é assim, Pequeno... é como aquela bolsa preta jogada no canto da calçada, vazia, estirada sob o sol, nessa terra mormacenta onde há um sol para cada um. Jogada pela dona? Jamais! Mas pelo cara que assaltou a dona e a deixou sem documento, sem cartão e sem dinheiro? Com certeza, sim...

...ou como aqueles cavalos soltos que vivem vagarosos pelas ruas, lembrando aos motoristas que os freios existem (pois só os burros lembram das buzinas nessas horas)...

...e enquanto, da garupa de uma moto, você vê tudo isso, só reza para chegar em casa, esquecer da bolsa, do antibiótico, da pipa, do assaltante e do sonho com o assento na circular para só imaginar com o ar condicionado do quarto ligado...

...e esse tempo gigante que agora passamos na frente do computador, mas em casa, dando aquele nó no cérebro sobre “lugar de trabalho” e “lugar de descanso”... para piorar, tem sempre alguém dizendo que é “fácil” fazer isso.

(claro que é fácil dizer isso para uma câmera, mas e para a realidade?)

...mas, pelo menos, poder ir para a pequena sacada de casa e olhar as árvores ao longe, ver a revoada de pequenos pássaros pretos sobre os matinhos, as torres de energia silenciosas e o barulho longínquo dos carros, como se a cidade estivesse longe...

...daqui ela parece longe o suficiente para que eu imagine pessoas dando tropeções, transando, contando dinheiro, comendo, vendo tv, fazendo faxina, salvando vidas, passeando com o cachorro, tendo dor de cabeça...

...a vida é assim, meu bem... e por hora, só desejo que todos tenham um pouco de paz e eu tenha um pouco de sorte...

Ribeirão Preto, 14 de julho de 2020.