31 de dez. de 2019

FELIZ ANO NOVO

Meu caro, minha cara.

O que eu vou falar não é uma garantia, mas eu acho que o primeiro passo para se ter um feliz ano novo é estar vivo.

Porque aquele senhor que vimos ontem à noite na estrada, com a cabeça grisalha dependurada para fora da janela do carro, com a poça de sangue ao chão, depois de ter invadido a pista oposta e se chocado com um carro e uma moto, sem usar o cinto de segurança...

Acho que, pra ele, esse lance de feliz ano novo não vai rolar...

Ribeirão Bonito, 31 de dezembro de 2019


28 de dez. de 2019

DENTRO DA NORMALIDADE


Meu caro, minha cara.

Anos atrás, quando eu era solteira e fazia o que dava na telha, eu ia mais a um dos parques da cidade aos finais de semana.

Romanticamente, escolhia um livro, ia até o parque com meu carro, escolhia um lugar para sentar e começava a ler.

Depois de cinco minutos, desistia de ler e ficava olhando as pessoas que passavam por lá.

Aliás, observar as coisas e as pessoas é um dos meus passatempos favoritos.

Um dia, durante a Agrishow, fui para o parque. Muitas crianças, muitos pais, mães e avós correndo atrás delas. Muitas pessoas fazendo suas caminhadas.

Quem destoou da paisagem foram as duas meninas loirinhas que subiram a ladeira em cima de seus saltos meia-pata.

Era... umas quatro da tarde? Não lembro bem. Mas era à tarde. Em meio a todas as pessoas que combinavam com o ambiente, essas duas apareceram e descombinavam tudo. Se estivessem em uma boite, combinariam, mas não estavam.

E não sei se alguém notou o detalhe, mas era o final de semana da Agrishow...

As meninas (não vou dizer mulheres, porque eram muito novinhas) chegaram no parque com seus saltos altos, suas bolsas enormes, seus vestidos e saias minúsculas e suas maquiagens borradas.

Foram em direção ao banheiro.

Cerca de 20 minutos depois, sairam.

Maquiagens refeitas, roupas trocadas, mesmos sapatos, perfume.

Sairam do mesmo jeito que chegaram: cagando e andando para quem prestou atenção nelas ou fez algum julgamento de valor.

(...)

A vida não é fácil...

Ribeirão Preto, 28 de dezembro de 2019.


19 de dez. de 2019

"VAI, MACARRÃO!"


Meu caro, minha cara.

Isso foi o que ouvi quando voltava para o carro depois de sair do ortopedista.

Quem gritou foi um carroceiro. Sabe o tipo? Pele da cor e da textura de tronco de flamboyant, barba branca e retorcida, cantando alto pelas ruas, magro e rijo.

Aposto que tinha um percentual de gordura corporal muito menor do que muito crosfiteiro...

E o "Macarrão"?

Macarrão era o cavalo que puxava a carroça, abarrotada de caixas desmontadas de papelão.

Esperei eles passarem, dei seta e sai. Na esquina, eu ia virar à esquerda. Eles também viraram. Eles foram primeiro, depois um caminhãozinho e uns dois carros. Macarrão ia na frente, lento como o trânsito que estava à frente dele.

O motorista do caminhãozinho ficou puto com Macarrão e o carroceiro. Na esquina seguinte, ele acelerou e cortou Macarrão pela esquerda. O baú machucou a copa de uma árvore que não tinha nada a ver com a história.

Pouco prestou a manobra: como eu disse acima, era o trânsito que estava lento. O caminhãozinho parou logo em seguida. O carroceiro parou de cantar e ficou mexendo com o motorista. "Não tá com pressa? Então corre agora! Vai, apressado!"

Não usou nenhum palavrão...

Tudo isso me deixou nostálgica. Pois quando era criança haviam muitos carroceiros com seus pangarezinhos magrelos pela cidade.

Alguém dito "antenado" poderia dizer que eles são "seres analógicos em um mundo digital"...

Mas eles são tão analógicos quanto o velhinho que atravessa a rua no farol fechado, usando boné e sapato social.

Tão analógicos quanto a minha menstruação, que chega antes e depois da data marcada no meu aplicativo.

Tão analógicos quanto a mulher grávida que segurava a barriga enorme enquanto deixava claro no rosto que sentia dor. Ao entrar no carro que estava parado ao meu lado no sinal fechado, disse ao marido: "Veio mais uma contração"...

Tão analógicos quanto o violão que escuto agora.

Tão analógicos quanto o macarrão com molho de atum que há tempos eu não faço e me peguei morrendo de saudades de fazer e comer...

Ribeirão Preto, 19 de dezembro de 2019.


14 de dez. de 2019

PLANTINHA

Meu caro, minha cara.

Tenho uma plantinha que eu gosto muito. É uma orquídea, que ganhei no dia dos namorados, dada pelo meu marido, num esforço de mantermos nosso relacionamento com gestos românticos e convencionais.

Acho que plantas são coisas lindas, mas assim como as crianças e os cachorros, não me vejo com capacidade técnica ou emocional para ter um.

Gatos... São outra história...

Mas a plantinha... Ah... Dou até banho, para lavar as folhas.

Converso.

Faço carinho.

Dou beijo.

Sorrio.

É bom ser convencional de vez em quando.

Mas só de vez em quando.

Ribeirão Preto, 14 de dezembro de 2019.


6 de dez. de 2019

BASTAM DOIS...

Meu caro, minha cara.

Eu quase bati o carro ontem.

E a culpa seria minha.

Pela minha impaciência, pressa e intolerância com a falta de atenção e falta de noção alheia.

Mas, para que o possível acidente acontecesse, bastariam dois carros...

Queria dizer que bastam dois... para que um beijo seja dado. Vi um casal se beijando quando estava no caminho para o trabalho e senti o quanto isso é bom.

Queria dizer que bastam dois para... que algo seja dito. Vi duas pessoas conversando, cada uma de um lado da avenida. Gritavam. Gesticulavam. Apontavam. Mas faziam isso com suas bocas, corpos e mãos, não com celulares.

Queria dizer que bastam dois para... flertar. Bastam dois para... terem um filho. Bastam dois para... que um sexo ótimo aconteça.

Mas ontem, dois carros, conduzidos por pessoas diferentes, bastariam para dizer que, para que um encontro aconteça, bastam dois. Pelo menos dois.

E isso nunca será garantia de ser algo bom...

Ribeirão Preto, 06 de dezembro de 2019.


4 de dez. de 2019

TÔ COMO...

Meu caro, minha cara.

Tô como aqueles poetas que dizem que estão amando o amor, estão apaixonados pela paixão, estão odiando o ódio...

Tô como aqueles adolescentes que curtem fossa, que olham para o infinito, para o horizonte, para o whatsapp, esperando, esperando, esperando...

Tô como aquelas ditas "moças casadoiras" que cuidam dos detalhes, querem tudo perfeito, esperam que sejam notadas, mas não são...

Tô como os estudantes estudiosos, orgulho dos pais, exemplo dos professores, ranço dos colegas, com medalhas prometidas, estrelas à sua espera e ansiosos pelo 10 nas provas convencionais...

Tô como as pessoas solitárias. Que sentam nos bancos dos passeios públicos. Olhando a vida. A brisa. Os pássaros. As marés. As pessoas. As nuvens. O sol. A lua. O tempo. As rugas. As decisões. As oportunidades. As desilusões. As vitórias. Os infortúnios. Os desejos. As dores. Os gozos. Os arrependimentos. A plenitude. A calma. A quietude...

Ribeirão Preto, 4 de dezembro de 2019.


2 de dez. de 2019

ÁRVORE DOS GRITOS

Meu caro, minha cara.

Sou daquelas que, quando gosta de um livro, sempre lê ele de novo.

Têm livros que eu já li umas... seis vezes?

Por aí.

Para mim, livro bom é aquele que ensina alguma coisa pra gente. Se só tem uma historinha bobinha, passo.

Mesmo que tenha uma multidão falando "puta lição de vida"...

Em um deles eu descobri a árvore dos gritos.

O nome é autoexplicativo: é uma árvore longe de tudo e de todos, onde você pode contar um segredo, soltar os cachorros, chorar, etc.

Atualmente, venho precisando de uma.

Mas, por falta dela, vou arrumando uns substitutos.

Choro debaixo do chuveiro abraçada no meu marido.

Bebo água loucamente.

Tomo dorflex como se fosse bala.

Já grito um "bom-dia-só-se-for-para-você" em plena segunda feira.

E, finalmente, grito com meu chefe.

Ele dá risada.

Graças aos céus que tenho um chefe que dá risada dos meus ataques histéricos e de um marido que me abraça no chuveiro...

Ribeirão Preto, 02 de dezembro de 2019.