27 de fev. de 2020

PURPURINAGENS

Meu caro, minha cara.

No 2o ano de faculdade eu achava tudo fascinante. Só que não entendia absolutamente nada. Por isso, frequentava todas as aulas, para saber se eu iria entender alguma coisa.

Uma das aulas que eu não me lembro de quase nada (nem hoje, nem na época) era dada por uma professora que devia se achar a reencarnação do Oráculo de Delphos: fumava mais do que uma vaca velha, olhava para o infinito e, ao falar, ia além.

Eu nunca entendia o que ela dizia. Ela viajava demais.

Uma noite, numa de suas muitas aulas lotadas (porque eu acho que, quanto mais uma pessoa divaga, mais louvável ela deve parecer), entra o Anselmo.

O Anselmo era meu colega de classe e pode ser descrito como um lorde inglês do beco. Uma classe e uma elegância que nem a educação mais cara podem dar, mesmo calçado com chinelos detonados e camisetas esgarçadas.

(Se me permitem um adendo, ele era dono de frases que só se tornam memoráveis quando ditas com seu tom de voz e expressão facial específicos, tal como "todo mundo traz dentro de si um bebezinho de merda que sempre está louco para nascer"...)

Pois bem: estava eu à noite, numa das aulas dessa pitonisa da Malboro, quando Anselmo entra na sala lotada e apertada, segurando uma taça de vinho tinto na mão (fiz UNESP, não estranhe), serpenteando pela sala até achar uma carteira bem no centro.

A sala toda prestou atenção nele, menos o fumacê filosófico.

Em minutos, ele levanta a mão e pergunta: "Mas, professora, tudo isso que a senhora está dizendo não é a purpurinagem?"

"Purpurinagem?"

"Sim, professora! Purpurinagem!"

"Não entendi..."

"Sabe quando você tem um papel?"

"Sei".

"E passa cola nele e joga a purpurina?"

"Sei".

"A purpurina cola, não cola?"

"Cola".

"Só que tem uma hora que, por mais que você passe cola e purpurina no papel, a purpurina não vai colar mais, não é verdade?"

"É".

"Então: essa é a purpurinagem!"

"Não entendi".

E volta a explicação do papel, da cola e da purpurina.

E ela continuou sem entender nada.

Na terceira vez, ele desiste. "Ah, esquece..."

Ele se levanta com sua taça de vinho e sua camiseta desbeiçada, sai lentamente do labirinto de carteiras e cabeças desordenadas e vai embora.

Ela, ainda sem entender que certas coisas não colam mais, volta para o limbo enevoado de suas palavras e que se foda a minha rinite por conta de tanto cigarro.

Foi a única aula dela em que aprendi alguma coisa...

Ribeirão Preto, 27 de fevereiro de 2020.


18 de fev. de 2020

AGORA VOCÊ NÃO VÊ

Meu caro, minha cara.

No dia em que eu fiz a cirurgia do meu joelho, minha avó faleceu.

A mãe do meu pai.

Ela não estava bem de saúde, mas ainda se mantinha firme.

Por conta da atenção que meus pais teriam que dar para mim no pós operatório, ficou combinado que ela ficaria internada na Santa Casa para monitoramento. Ela teve, anos atrás,um pequeno infarto.

Desde então, seu coração não funcionava muito bem.

Uma hora antes de entrar no centro cirúrgico, o hospital ligou para meu pai avisando que minha avó havia morrido. Quando perguntamos o que tinha acontecido, eles disseram que ela apenas dormiu e morreu.

Na época eu estava com poucos meses de namoro e meu então namorado (agora, meu marido), ligou para perguntar como eu estava. Eu disse que estava bem, ansiosa para que tudo acabasse logo, e avisei que minha avó havia morrido.

Ele ficou em choque.

E eu disse: "Fica tranquilo, tá tudo bem".

Ele ficou mais em choque ainda.

Para ele (e eu acho que para boa parte da população da Terra), a minha resposta foi muito fria.

Só que eu sei que não foi.

Porque eu conheço a história dela. Eu conheço a história da minha família.

Até onde pude ir, eu conheço a minha história.

Sei o papel de cada um nela.

E digo com muita clareza que falar "fica tranquilo, tá tudo bem" para ele, naquele momento, era a justa medida do que a situação merecia.

Sem raiva, desprezo, ódio, rancor, lamento, saudade, culpa, alegria, alívio, remorso...

Ela apenas se foi...

...e quanto a isso, tá tudo bem...

Ribeirão Preto, 18 de fevereiro de 2020.


17 de fev. de 2020

A PIOR COISA DO MUNDO

Meu caro, minha cara.

Quando estava na faculdade, fui obrigada a clinicar.

Como eu não gosto das redondilhas e rococós dos adultos, escolhi atender crianças.

Para quem é da área, vai entender que atendimento infantil é mais... cru, é mais "porrada".

Um dos pacientes que eu tive foi m menino lindo de 10 anos de idade.

As questões que o levaram até mim não são relevantes aqui.

Mas me lembrei agora de uma de nossas sessões. Jogávamos muito futebol na sala de ludoterapia e, de uma hora pra outra, ele para e diz: "estou com uma espinha dentro da minha orelha. é a pior coisa do mundo ter espinha dentro da orelha!"

Enquanto dizia isso, cutucacva a orela esquerda e mostrava pra mim onde estava dolorido.

Eu perguntei: "Você já teve outras espinhas antes?"

E ele, surpreso, me disse que não! que era a primeira!

A primeira espinha dele foi na orelha, rs

(...)

Que bom se fosse só isso, não? A pior coisa do mundo ser uma espinha na orelha de um menino de 10 anos...

Ribeirão Preto, 17 de fevereiro de 2020.

16 de fev. de 2020

Philip H Dick


AO COSMOS

Meu caro, minha cara.

Vi uma estrela cadente hoje. Um pedaço de meteoro caído do céu, vindo de outros mundos, sejam eles do tamanho de planetas, estrelas ou uvas.

Vi uma estrela cadente e não soube o que pedir.

Desejei coisas que talvez pudessem magoar.

Ou libertar.

Mas fiquei mesmo foi olhando para o céu escuro revelando sua mortalha de estrelas.

Fiquei olhando para a nuvem solitária, sobrevoando bairros agora distantes, iluminada por dezenas e dezenas de postes, faróis e lampadinhas nas sacadas das casas.

Deixando para trás as luzes da cidade e abraçando a luz das estrelas, só pude contemplar esse deus das pequenas coisas, que habita nos insetos que batem no meu capacete, nas folhas de grama escurecidas pela noite e nas estrelas cadentes vindas de mundos frios e do tamanho de uvas.

Essa contemplação que hoje é tão estranha a tantos outros, afeitos da binária velocidade. Essa beleza que, para tantos, não é beleza: é bruxaria...

...é a fantasia escondida atrás dos segundos e de tantos cotidianos únicos.

... é a fascinação... É o sorriso pelas coisas tolas...

... é a magia do olhar atento e do coração amistoso...

...E se eu viver sem essa magia, terei morrido em vida...

Cravinhos, 15 de fevereiro de 2020.


12 de fev. de 2020

"RECLAME AO GERENTE"

Meu caro, minha cara.

Meu primeiro trabalho foi num banco. Fiquei lá dois anos e meio e fui promovida duas vezes: a primeira eu saí do atendimento Pessoa Física e fui para Pessoa Jurídica. A segunda vez eu sai da cidade em que meus pais moram e vim para a cidade que estou hoje.

Vim parar no segmento com a maior carteira de contas jurídicas do banco.

E chutei tudo poucos meses depois para trabalhar com RH.

(mas isso é outra história)

Enquanto estava na agência da cidade dos meus pais, haviam dois dias no mês que eram verdadeiras operações de guerra: 5º dia útil e dia 10. Blindávamos a entrada da agência para que o menor número de pessoas possível fossem até aos caixas internos, direcionando tudo o que podia para os caixas eletrônicos e correspondentes bancários.

Mesmo assim, era um pequeno inferno.

(mas isso também é outra história)

Uma coisa que era comum nesses dois dias, todos os meses, eram as filas.

E as pessoas reclamando na filas.

Pois elas reclamavam para as outras pessoas nas filas.

Nunca para a gerente da unidade.

(...)

Durante a faculdade (mas mais ainda durante a terapia) ficou muito claro - para mim, pelo menos - o funcionamento de um comportamento masoquista.

O prazer pelo sofrimento...

...querer e não ter...

...semear um deserto com boas sementes...

...arar praias...

...investir em buracos emocionais...

...reclamar baixinho para que ninguém te escute...

...e ter o prazer de ter sempre sobre o que falar...

(...)

Acho o sofrimento tão previsível, não?

O gozo não é previsível. Você não sabe quando ou o que vai te fazer te despertar para a alegria, a satisfação... nem mesmo quando você está transando você sabe se vai gozar ou não...

O gozo dá trabalho...

...mas o sofrimento...

...é satisfação garantida...

Ribeirão Preto, 12 de fevereiro de 2020.


Albert Einstein


6 de fev. de 2020

PATÉTICA


Meu caro, minha cara.

Se olhando no espelho, não viu nada além.

Chegou mais perto, passou os dedos de leve pelo rosto. Estreitou os olhos para ver o efeito das rugas que ser formavam. Olhava mais de perto e via as manchas - quase imperceptíveis - que tinha no rosto.

"Haja protetor solar e ácido", pensou.

Ao se distanciar, viu que não havia harmonia. Seu corpo não era aquela proporção áurea, calculada e divina que sempre quis.

Pensou se era por causa das revista de moda, dos anúncios diversos, mostrando as "divinas donas, donas de grandes feitos e peitos".

Mas, se fosse isso, por que se sentia assim desde menina?

Disforme, desde menina?

Pega a mãe, pega a tia, pega a outra tia, pega a vendedora de roupas da loja infantil e coreem de um lado para o outro para achar quem troque o tamanho da camiseta ou do short - mas nunca os dois.

Duas pessoas numa só, desde criança.

Como um centauro: metade humana, e metade cavala.

Olhando para as pernas, outro corpo: como é possível se sustentar com isso? Se bater um vento mais forte, leva...

Volta os olhos para o rosto no espelho. Gosta muito do cabelo, mas o choque é saber que os primeiros fios brancos começam a aparecer.

'Você é tão jovem..." pensou. Tão jovem, com uma vida inteira pela frente, mas já lembrando que boa parte da vida passou e boa parte das coisas que queria não chegaram.

Por "N" motivos.

Pensa em como fulano ou beltrano lhe responderiam se tivesse coragem suficiente para falar algo a respeito.

"Você é bonita", "você é gostosa", "você é gente boa".

"Que sorte eu teria se você me desse bola..."

Mas tudo o que ouvia mentalmente era: "tô falando tudo isso porque quero te comer e depois ir embora".

Como outros antes destes.

"E mulher que gosta de sexo é vagabunda".

Ouvia novos pensamentos: "que falta de auto estima do caralho!", "você é boa, é suficiente", "é bonita, é desejável".

Mas ninguém sabe o que é estar por debaixo de sua pele.

Pois os dias bons são para serem curtidos, mas dias ruins...

(...)

Os minutos passam.

E ela adquire um auto controle minimamente decente.

Encara o espelho para passar o protetor solar. Veste o que tem que vestir e vai embora.

Vai mentir por aí...

Ribeirão Preto, 06 de fevereiro de 2020.


2 de fev. de 2020

A VIDA BOA

Meu caro, minha cara.

Olhei para o saldo e para o Excel e pensei: "tudo certo". Respondi que sim no whatsapp e avisei em casa sobre sábado. Pouco antes da hora, recebi uma mensagem: "vou atrasar 10 minutos". Beleza; vai dar tempo de passar na papelaria e comprar caderno, caneta e papel para escrever cartas para a Aline. No final, não houve atraso algum e eu acabei chegando atrasada. Meti um carro no estacionamento e subi a ladeira. E sentei no café. Depois de quase 3 anos, finalmente conseguimos bater papo para conversar. A última vez foi um almoço, com a recomendação "comece a procurar emprego". Foi numa segunda feira. Na sexta, fui demitida. Mas isso eu já sabia. Aliás, embora tenha ficado doente lá, ser mandada embora foi a coisa mais incrível que poderia ter sido feita por mim. E foi feita. E sou grata. Foi um gesto de bondade, ao contrário do que se parece. Depois de tanto tempo, nos vemos de novo. Falamos das respectivas famílias, dos trabalhos, falamos mal de quem merecia (rs), como se o tempo não tivesse passado. Foi bom rir e perceber que o tempo de fato passou, para mim, para ela e para todo mundo. É bom olhar para trás e saber que todo seu caminho te trouxe até um café da manhã em boa companhia. Nós levantamos e fomos comprar linha pra crochê, chá e placa de identificação para lápide no cemitério. Tudo isso em meio a risadas e à certeza de que mudamos para continuarmos as mesmas. Nos despedimos e passo na farmácia e, depois, casa. No caminho recebo uma ligação que não esperava. Era outra, do mesmo tipo de gente que a primeira: o tempo pode passar, podemos mudar, mas a conversa é sempre fresca como um banho, um copo de água gelado, uma cadeira para pés cansados, ar condicionado em dias de verão. Conversa animada sobre orquídeas desencanadas e como controlar o orçamento. E ainda: como ser adulta, como olhar o simples, como sorrir para as pequenas coisas, como é bom movimentar a vida, como é bom enxergar a beleza, como há altos e baixos, como é bom saber que se é capaz de amar. Depois do almoço, séries e cama. Sono, sono e sono. Acordar a noite para comer, abraçar, ficar em silêncio e mais sono. Acordar às 5h para deixar o gato sair do quarto e sorrir por conseguir ter uma rotina que leva em conta a vida de um bichinho tão diferente assim. Aliás, saber o que um bicho quer é uma vitória: a vitória da sensibilidade. Fazer o que se deve e o que se quer, sem ter que responder a expectativas diferentes daquelas que se cria para si. E saber quais expectativas criar para si. E saber que, mesmo tento uns momentos bosta, a vida até que é boa no fim das contas.

Ribeirão Preto, 2 de fevereiro de 2020.