19 de jul. de 2020

MUTANTE...

Meu caro, minha cara.

Eu tenho sorte de olhar para o céu escuro e ver estrelas. Em Santos, quando tinha sorte, eu via a lua por entre as nuvens.

Nas noites em que o céu estava limpo, ele parecia apenas um pano preto refletindo as luzes dos postes, como se um pano preto refletisse alguma coisa.

Mas nos dias de céu limpo, tanto lá quanto cá, fica bom sair de casa e ver os contrastes: aqui o azul vai bem com o verde da cana, com o amarelo do milho seco, com o vermelho da terra. Lá, o azul era mais bonito que os prédios da orla, a areia preta, a água escura.

Antes do anoitecer, as cores mudam. Lá, sempre ficava laranja. Aqui, muitas vezes é rosa. E ao final, estrelas. Muitas estrelas...

Ribeirão Preto, 19 de julho de 2020.


14 de jul. de 2020

A VIDA É ASSIM...


Meu caro, minha cara.

...a vida é assim, Pequena: você olha para uma calçada e vê um homem ganhar a vida vendendo carvão na rua feito com madeira não certificada. Enquanto isso, a mulher fica sentada num banquinho debaixo de uma árvore e o filho mais novo empina pipa ao lado do poste...

...você olha em seguida e outro garoto de sete anos joga bola descalço na rua, com a pele de chocolate e o cabelo descolorido igual jogador de futebol com gosto duvidoso de moda...

... vê a mulher de máscara no ponto de ônibus, respirando fundo para aliviar o dia, para aliviar a rotina, para aliviar os músculos e sonhar com um assento livre na circular, antes de chegar em casa...

...olha para dentro da farmácia e imagina o que as pessoas compram: antibiótico, camisinha, esmalte, leite em pó, álcool gel, ansiolítico, farmacinha, kit ressaca, enquanto rezam para que a mendiga com o bebê do lado de fora esqueça que pediu a cada um deles um pacote de fralda...

A vida é assim, Pequeno... é como aquela bolsa preta jogada no canto da calçada, vazia, estirada sob o sol, nessa terra mormacenta onde há um sol para cada um. Jogada pela dona? Jamais! Mas pelo cara que assaltou a dona e a deixou sem documento, sem cartão e sem dinheiro? Com certeza, sim...

...ou como aqueles cavalos soltos que vivem vagarosos pelas ruas, lembrando aos motoristas que os freios existem (pois só os burros lembram das buzinas nessas horas)...

...e enquanto, da garupa de uma moto, você vê tudo isso, só reza para chegar em casa, esquecer da bolsa, do antibiótico, da pipa, do assaltante e do sonho com o assento na circular para só imaginar com o ar condicionado do quarto ligado...

...e esse tempo gigante que agora passamos na frente do computador, mas em casa, dando aquele nó no cérebro sobre “lugar de trabalho” e “lugar de descanso”... para piorar, tem sempre alguém dizendo que é “fácil” fazer isso.

(claro que é fácil dizer isso para uma câmera, mas e para a realidade?)

...mas, pelo menos, poder ir para a pequena sacada de casa e olhar as árvores ao longe, ver a revoada de pequenos pássaros pretos sobre os matinhos, as torres de energia silenciosas e o barulho longínquo dos carros, como se a cidade estivesse longe...

...daqui ela parece longe o suficiente para que eu imagine pessoas dando tropeções, transando, contando dinheiro, comendo, vendo tv, fazendo faxina, salvando vidas, passeando com o cachorro, tendo dor de cabeça...

...a vida é assim, meu bem... e por hora, só desejo que todos tenham um pouco de paz e eu tenha um pouco de sorte...

Ribeirão Preto, 14 de julho de 2020.