18 de dez. de 2016

OBSERVATÓRIO

Meu caro, minha cara,

      Uma das coisas que eu aprendi a fazer desde que eu era criança era observar. Por meio da observação você consegue entender algumas histórias, você consegue se antecipar, avaliar o caráter ou evitar algo desagradável.
      Isso, como todas as coisas que a gente aprende, tem seu lado bom e seu lado ruim. O lado ruim é a paranóia. Você fica tão preso aos detalhes, tão focado no trivial, que acaba sendo absorvido pelo supérfluo e perde o que é importante.
      Neste caso, o importante é a moderação. Usar o "poder" da observação nos pequenos gestos, naqueles momentos desimportantes, pois quando ninguém está olhando (ou pelo menos assim parece) é que somos nós mesmos. E são esses os momentos em que eu mais gosto de ficar atenta.
      E essa é a parte boa.
      Isso leva prática. E tempo. Como disse logo acima, aprendi isso de criança e não aprendi isso sozinha; foi meu pai quem me ensinou a prestar atenção nas pessoas e a perceber que são nos detalhes que elas se revelam.
      E olha que coisa curiosa: embora eu xingue todos os dias o fato de ter feito Psicologia (profissionalmente eu teria tido muito mais proveito se tivesse feito Administração) esse curso me serviu para treinar meu ouvido e meu olho para perceber e assimilar as coisas que eu percebo de forma diferente.
      De forma mais... real.
      Foi por esse motivo que eu resolvi escrever hoje: por causa de três situações que eu lembrei agora de manhã cedo e que eu só pude percebe-las porque, desde muito cedo, eu aprendi a observar:

***

      No meu último ano de faculdade eu viajei de Assis para Campinas, pois iria encontrar meus pais lá. Como cheguei muito cedo, fiquei sentada, esperando por eles e pelas abertura das lanchonetes da rodoviária velha.
      Há uns 15 metros de onde eu estava, bem na minha frente, abriu a primeira lanchonete. Era um rapaz, na casa dos 35 anos. Ele ligou a cafeteira, limpou o balcão, tirou algumas coisas da geladeira.
      Enquanto isso, foi se aproximando daquela única lanchonete aberta um senhor, catador de material reciclável, arrastando em uma das mãos um saco de ráfia laranja (desses de embalar saca de cebola na feira, conhecem?) com algumas latinhas de alumínio dentro. Além do saco de ráfia, ele tinha um boné preto e uma capa preta de chuva com o dobro do seu tamanho, tão grande que arrastava no chão.
      No saguão da rodoviária velha, só haviam nos 3: o cara da lanchonete, o velho da saca cor de laranja e eu.
      O velho se aproximou do cara da lanchonete e grunhiu. O cara da lanchonete o cumprimentou com um sorriso e fez sinal para ele esperar. Pegou o café recém coado, o leite fervido e pos tudo num copo americano. Quando o velho da saca de ráfia ia pegar o copo, o cara da lanchonete fez sinal com a mão, pedindo para que o outro esperasse. Pegou um saleiro debaixo do balcão e polvilhou por cima do pingado.
      (Algum desavisado vai pensar: "Meu Deus! Ele pôs sal no pingado!?! Não, meus caros, era canela em pó).
      Ambos deram risada: o velho da saca de ráfia grunhiu alto e com ar satisfeito. O cara da lanchonete sorriu com orgulho. O velho da saca de ráfia pegou o açucareiro e tascou açúcar pra dentro do copo. Bebeu seu pingado COM CANELA e foi-se embora sem pagar.
      O cara da lanchonete ficou vendo o velho com a saca de ráfia ir embora, no seu passo curto e lento. Estava satisfeito com o que fez.

***

      Uns 3 meses atrás (ou 4, não me lembro) estava indo para o trabalho de carro. Enquanto aguardava minha vez de entrar numa avenida muito movimentada, vi algo que não se vê com frequência.
      Na parte de fora de uma clínica, uma faxineira fazia seu serviço, limpando a calçada cheia de folhas. Absorta no seu trabalho, nem percebeu que, atrás dela, se aproximava um homem na casa dos seus 40 anos, quase agachado. Ele ia andando pé ante pé, bem devagar, como se não quisesse fazer barulho.
      Quando estava bem perto da faxineira, veio o bote: ele pulou para cima dela, dando um grito e um abraço. A pasta que ele carregava foi para o chão, assim como a vassoura que ela tinha nas mãos que, no susto, voou longe.
      Nesse momento, surgiu uma brecha para eu entrar na avenida, mas como não tinha nenhum carro atrás de mim, eu resolvi ver o restante da cena pelo espelho retrovisor. Faxineira e homem se abraçavam, refeitos da brincadeira de criança.
      Ele ajudou a resgatar a vassoura dela, ela desejou bom trabalho para ele e ambos voltaram a serem "adultos" novamente. Crescer é um conceito tão relativo...

***

      Faz mais de 8 anos que eu trabalhei no banco. Faz mais de 8 anos que eu me mudei para Ribeirão Preto. Faz mais de 8 anos que isso aconteceu.
      Eu estava indo embora para casa, depois de mais de um dia na agência. Naquela época eu ainda não tinha carro, então eu tinha que andar 2 quarteirões até chegar no ponto de ônibus e esperar 1h dentro dele até chegar em casa.
      Numa tarde, enquanto aguardava o circular chegar, uns meninos bricavam na rua. Brincavam de esconde-esconde. Uns ia parar atrás dos carros, subiam em árvores... Eram esconderijos muito óbvios. Nenhum deles podiam se esconder dentro das casas (pois aí seria muita sacanagem). Só sei que era mais uma questão de quem corria primeiro para se salvar, pois achar os colegas era muito fácil.
      Numa das rodadas, o menorzinho da turma veio se esconder perto de onde eu estava. O ponto (que nada mais era que um poste de madeira) ficava em frente à uma garagem, que oferecia um nicho muito pequeno para alguém se esconder. Mas o menorzinho foi para lá, na esperança de que, se se espremece bastante contra o portão, poderia ficar invisível.
      Vendo aquela situação, não resisti: encostei na parede perto do portão da garagem e virei o restante do esconderijo que o menorzinho precisava.
      "3, 2, 1, lá vou eu!". E o primeiro garoto bateu o pic, depois o segundo, o terceiro, e nada de acharam o menorzinho.
      Quando o moleque que estava procura dos escondidos foi para o outro lado da rua, eu dei passagem e o menorzinho saiu correndo para bater o pic. Era o último que faltava. Meu ônibus chegou e eu entrei.
      Nunca mais vi os meninos. O menorzinho nunca me agradeceu a ajuda. Essa foi a última vez que eu brinquei de esconde-esconde.

Ribeirão Preto, 18 de dezembro de 2016