31 de ago. de 2019

A UMA MORDIDA DE DISTÂNCIA

Meu caro, minha cara,

Morder.

Esse foi o hexagrama que apareceu na última vez que joguei o I Ching.

I Ching... Logo eu, tão racional, tão afeita à ordem... Pois é: jogo de vez em quando.

Funciona assim: você pergunta, o I Ching responde, você quebra a cabeça para interpretar. E precisa de muito cuidado para interpretar da maneira correta, não a que reforça o que você quer ouvir.

É um oráculo sem pitonisa, um convite ao desastre...

Por isso que jogo pouco: não se pode banalizar um oráculo.

Pois bem: não vou dizer a pergunta, mas sim a resposta.

"Não progredirei até tomar uma decisão".

Só que não sei que decisão é essa. Ainda estou como um míope que não enxerga nada. Tudo está embaçado, não vejo as opções que tenho!

Ver o mar (meu carinho, mãe e amor) só serviu para me mostrar o quanto ainda estou cega e preciso de um guia.

Meu kraken ainda não pode cumprir esse papel. Até o momento ele só me deu garras, mas ainda me faltam os olhos e os dentes.

Não quero tomar decisões no escuro...

Ribeirão Preto, 31 de agosto de 2019.

Janes Joplin - Kosmic Blues


"Não espere alguma resposta, querido
Pois eu sei que elas não vêm com a idade"

20 de ago. de 2019

VENTO SUL

Meu caro, minha cara,

"Olá, minha mãe. Tudo bem? Estou aqui".

Essas foram as minhas primeiras palavras quando botei meus pés na água e os afundei um pouco na areia. Água gelada, indo e vindo contra meus tornozelos.

Quanta saudade estava guardada nesse meu peito e eu nem sabia o quanto...

(...)

Nasci numa ilha em 1981 e nunca prestei atenção nisso. Ao contrário de muitos e muitas, não gostava de ficar ao sol rolando como um bife empanado, me bronzeando. Sempre fui branquinha, sempre gostei de ser branquinha.

Mas o mar estava ali e ele não serve apenas para nadar. Gostava de olhar para ele e das caminhadas que minha família e eu fazíamos no calçadão nessa época. Nessa época, minha família era bem maior, pois haviam tios, tias, primos e primas, além de vó, pai, mãe e irmão.

Há também um grande benefício de se morar perto do mar: todo réveillon pulávamos sete ondas e jogávamos uma rosa branca para Iemanjá. Essa mãe sempre recebia com carinho tudo o que lhe dava.

Por conta de várias decisões que não tomei, fomos embora para o interior. No começo, gostei, pois pensei que teríamos um novo começo em um novo lugar. Ao sair da ilha, pensava que deixaria para trás a alergia e o inferno dos invasores (vulgo turistas). Deixaria a escola do meu irmão e todas as pessoas mesquinhas que encontrei lá.

Poderia seguir.

E segui.

Não o caminho que eu queria, mas o caminho que deu.

Mudei de cidade mais quatro vezes. Na atual, estou há 11 anos. Nela eu finquei minha carreira e mudei meu estado civil. Encontrei todo tipo de gente, como é de se esperar em cada local em que se "escolhe" para si.

Finalmente de férias, viemos para o Sul, para outra ilha. Indo na contramão do clima, viemos para cá no inverno e fomos apresentados ao Vento Sul. Ele paralisa meu rosto e chicoteia meus cabelos até ficarem embaraçados. Ele me abraça e me força a andar com mais firmeza. Meu marido não gosta dele. Eu o amei logo na primeira lufada.

Apenas um dia incrível de sol bastou para irmos na praia. Não para ficar empanando na areia, mas para matar as saudades. "Oi mãe, senti sua falta", eu dizia. Repito isso com lágrimas nos olhos, com ela na minha frente em plena maré alta, enquanto estou sentada na orla escrevendo isso.

Sinto falta da água, do sal, da areia, do vento.

Sinto saudades dessa casa sem raízes.

Estou em uma terra onde falta tudo isso...

Florianópolis, 20 de agosto de 2019.



11 de ago. de 2019

EM TRAPOS / Legião Urbana - Baader-Meinhof Blues

Meu caro, minha cara,

Tempos atrás, quando minha vó morava no interior (mas aquele interior com força mesmo, não aquele pasteurizado de novela), íamos para a casa dela mas férias. Íamos minha mãe, meu irmão e eu. Raramente meu pai ia pois estava trabalhando na refinaria.

Foi numa dessas férias que meu irmão e eu aprendemos a fazer cola misturando água com farinha de trigo e a empinar pipas (quer dizer: ele aprendeu a empinar, eu ficava só olhando e dando pitaco).

Na casa da frente da minha vó havia uma família muito pobre. Lembro que o muro era apenas um ajuntamento de bambus entrelaçados com arame e o chão era de terra batida. Mas haviam crianças lá, então nada mais importava.

Lembro que aquela casa cheia de crianças só tinha uma menina, um pouco mais velha que eu, acho. O resto, tudo menino. Mas brincadeira de criança não tem gênero, não é verdade?

Exceto uma vez.

Brincávamos de polícia e bandido e, na brincadeira, a menina seria a vítima. Os irmãos dela seriam os bandidos e a vestiram (por cima das roupas normais) com alguns trapos, roupas muito velhas que eram usadas pra limpeza.

Então, começou.

Os "bandidos" (os irmãos da menina) começaram a "bater" nela e a rasgar suas "roupas". Ela gritava para encarnar na personagem, mas acho que era só por isso mesmo. Pensei assim por causa dos olhos dela, fascinados com o que acontecia. A violência com o que incorporavam seus papéis me deixou perplexa. Mas não assustada. Com seis anos de idade, vim saber antes de ouvir Legião que "a violência é tão fascinante...".

Pouco depois minha vó se mudou para outra cidade, um pouco maior, mas ainda no interior. Nem me lembrava mais daquela família e daquela cena.

Até que minha vó morreu.

Quando chegamos na cidadezinha em que ela morava antes, onde seria o enterro, a cidade inteira estava lá. Eu já havia me formado na faculdade e estava sem emprego ainda. Mas, como eu era a primeira neta dela a ter diploma, isso era algo especial (pelo menos, para minha mãe).

Entre todas as pessoas que nos cumprimentavam e nos davam condolências, ouve uma senhora que chamou minha atenção. Ela estava surpresa por eu estar "tão grande" e minha mãe logo foi falando que eu "já tinha até diploma". Atrás dela havia uma moça raquítica com uma bebê no colo. Olhei para a moça e reconheci na hora a menina que teve as "roupas" rasgadas naquela "brincadeira".

A mãe dela dizia entusiasmada "vocês brincavam quando era criança! Por que não conversam um pouco?".

Sem jeito, sentamos num dos banco e procurei ser simpática. A moça raquítica mal conseguia formar uma frase. A bebezinha (com pouco mais de um ano) estava com fome e ela ignorava as reclamações da filha. A impressão que me passou é que ela não sabia o que fazer com aquilo. Peguei uma barra de cereal com chocolate e dei para a menininha.

Perguntei como estava a vida, se ela estava bem, o que tinha feito. Ela só sorria e balançava a cabeça. Sem conseguir formar uma frase. A mãe dela logo veio ao socorro, dizendo que o pai da criança estava "viajando".

A gente sabia que ele não estava viajando porra nenhuma.

Onde não há informação, há imaginação: enquanto a moça quieta apenas sorria e acenava com a cabeça, imaginei o que poderia ter acontecido.

Imaginei uma vida de submissão aprendida. De uma violência aprendida. De uma resignação aprendida. De um sem-futuro aprendido. Aonde era mais importante saber fazer feijão do que conjugar um verbo. Saber lavar roupa no tanque do que uma adição.

Imaginei uma vida onde um único e possível alívio seria um orgasmo inconsequente e uma filha como consequência. Uma filha que tinha fome e que, muito provavelmente, continuaria o ciclo. Uma filha sem pai presente, que "pode" fugir daquilo sem ser crucificado.

Na época eu pensei o quanto eu tive sorte de não ter tido a mesma criação que ela.

Mas, depois de muito tempo, eu percebi porque eu não fiquei assustada com aquela cena da infância.

A violência se torna fascinante quando ela não é apresentada a você como tal.

Quando ela é travestida de Amor, a única coisa que você deseja é espalhar Amor pelo mundo, mesmo que acabe em trapos.

Mococa, 11 de agosto de 2019.


"...e nossas vidas são tão normais..."