27 de jul. de 2019

ANÉIS E DEDOS

Meu caro, minha cara,

Sempre se escuta que, quando algo de ruim acontece, mas não uma catástrofe, é costume dizer que "vão-se os anéis, ficam-se os dedos".

Nunca ouvi dizer o que acontece quando os anéis chegam...

Desde que consegui nomear esse serzinho que vive dentro de mim, eu converso bastante com ele.

(Não... Não estou grávida... Estou falando do meu Kraken...)

Pois bem: desde que eu o identifiquei e batizei, temos conversado bastante.

Embora ele não queira que muitas coisas que estão acontecendo de fato aconteçam, ele tem me ajudado a segurar firme e seguir em frente.

Ele, inclusive, até tem me ajudado a descobrir maneiras mais... inteligentes (eu diria) de dar conta da minha ansiedade (entre outras coisas).

Um desses jeitos foi o de voltar a usar anéis nos dedos. Mas não bijuterias. Jóias.

Nunca fui de usar nada. Creio que, em parte, por sempre ouvir minha mãe dizer que eu perderia tudo, já que (segundo ela) eu era uma cabeça de bagre que não tinha cuidado com as coisas.

(Depois me perguntam por que eu faço cara de cú para muitas coisas...)

(...momento bitch face...)

(...vamos voltar ao assunto...)

Bom. Na adolescência, eu decidi que eu iria me expressar de alguma forma. Fui numa hippie na pracinha perto da rodoviária e comprei brincos e anéis baratos. Usei os brincos até quase perder as orelhas, de tanta alergia e inflamação que deu.

(...outra coisa que a minha mãe dizia: brincos fajutos causam inflamação - eu só podia usar ouro...)

(...mas ela nunca deixava eu usar nada, porque eu era a cabeça-de-bagre-que-não-tinha-cuidado-com-as-coisas...)

(...mais um momento bitch face...)

Usei tudo que eu tinha vontade até que a minha força de vontade vencesse as alergias.

Deu certo: minhas mãos pareciam mãos de ciganas, com tantos anéis que haviam. Minhas orelhas, sempre com brincos que mais pareciam sinos. Meus pulsos, sempre cobertos com pulseiras hippie como braceletes.

O colégio passou e fui para a faculdade. Com o tempo, deixei os anéis para trás e fiquei só com os dedos.

Ah! Um detalhe importante: desde que me conheço por gente, eu roo minhas unhas.

Passei pela faculdade, desemprego, emprego, mudança de cidade, solteirice e casamento com os dedos assim: sem anéis e com unhas roídas. Deixei as bijuterias de hippie para trás e trouxe comigo as jóias de família, mas sem usá-las, pois eu era uma cabeça de bagre que não tinha cuidado com as coisas...

... até meu Kraken e eu sermos formalmente apresentados, fazendo que um deixasse de se esconder do outro...

Para selar esse convívio, voltei a usar anéis. Os de ouro. Alguns agora vivem nos meus dedos de forma permanente, em ambas as mãos.

Para que eles não fiquem deslocados, parei de roer as unhas. Agora, passo cremes, óleos e esmaltes. Nunca tive unhas tão longas e fortes quanto agora.

Fazem um par bonito. Além disso, penso que deixei de ter mãos de criança este ano.

Me casei com este diálogo e decidimos fazer isso com calma.

Quanto à cabeça de bagre que não se importa com as coisas? Eu quero mais é que se foda...

Ribeirão Preto, 27 de julho de 2019


24 de jul. de 2019

A-Ha - Stay on these roads



"Continue, meu amor..."

OLÍVIA

Meu caro, minha cara,

Durante um período da faculdade tínhamos na república uma cachorra chamada Olívia. Ela era uma linda Pit Bull red noise com músculos bem definidos, um latido muito grosso e alto e uma personalidade que mais parecia a de um labrador.

Mais tapada, impossível.

No entanto, era ótimo morar com ela. Os entregadores do mercado tinham medo, assim como os vizinhos, os ratos de esgoto que as vezes apareciam no quintal eram exterminados sem dó.

Além disso, ela era carinhosa, brincalhona e muito companheira.

Só nós sabíamos que ela era, na verdade, um ser inofensivo e que eu era o animal mais raivoso da casa.

No começo, não nos demos bem. Ela comeu parte do meu colchão de casal, que ficava na sala fazendo as vezes de sofá. Ela também gostava de pegar minhas meias na caixa de roupas sujas para levá-las ao quintal e ficar cheirando e mordendo.

Quem gosta de cheirar meias sujas?

Mas nos entendemos depois. Eu adorava aquela cachorra.

A dona dela, a Tati, virou minha amiga nessa época. Brinco que, de tanto que brigamos, gastamos nossa cota de discussões dessa vida e desde então nos damos muito bem.

Algumas vezes, eu levava a Olívia para passear. Ela tinha uma coleira do tipo forca, que apertava o pescoço do animal à medida que este se projetava para frente.

Só que com a Olívia isso não adiantava nada. Ela preferia se estrangular, saltar os olhos para fora do globo ocular, perder o fôlego e machucar o pescoço a andar mais devagar.

Nessas ocasiões, eu parava um pouco, pegava a Olívia nos meus braços e a segurava até ela voltar a respirar novamente.

Eu entendo hoje em dia essa ansiedade. Em querer ir, correr, voar e investir nisso, mesmo que a coleira que te prende te machuque mais e mais. E também na necessidade de ter alguém que, na nossa falta de limite, faça isso por nós.

Um dia, estava passeando com ela e até que ela se comportou bem. Morávamos perto de uma rotatória e duas ruas muito movimentadas. Na volta para a casa, tínhamos que passar por essa rotatória e, devido ao volume do trânsito, a Olívia ficou muito assustada.

Para piorar, quando íamos atravessar, um carro acelerou, meteu a mão na buzina e jogo uma luz muito alta para cima de nós.

A Olívia entrou em pânico e começou a pular de um lado para o outro. Não havia jeito de deixar a cachorra mais tranquila.

Nisso, fiz o que consegui fazer: arrastei a Olívia pelo pescoço ao atravessar a rua e fomos correndo para casa. Não foi a melhor saída, mas foi a possivel. Havia tentado levar ela no colo antes, mas quando você tem um animal com algumas dezenas de quilos se debatendo nos seus braços, você precisa de um plano B.

(E planos B nunca são perfeitos. Eles são apenas... Possíveis...)

Depois daquele episódio, mudei o itinerário dos passeios.

No meu último ano de faculdade a Olívia não morava mais com a gente. Ela se mudou com a dona dela para outra cidade. Ainda vi a Olívia mais algumas vezes, mas muito pouco.

Sempre gostei dessa cachorra e, de todos os animais que nunca foram meus, ela tem um lugar especial no meu coração.

A algum tempo ela morreu e confesso que eu tenho saudade dela. Lembro das histórias, dou risada, fico sentimental. Contudo, entre todas as lembranças que tenho dela, a mais marcante foi do dia em que o motorista daquele carro foi maldoso com a gente.

E da forma como reagimos.

Não da melhor maneira.

Mas da maneira possível.

Ribeirão Preto, 24 de julho de 2019


21 de jul. de 2019

DOMINGO

Meu caro, minha cara,

Meu marido diz que, aos domingos, fico triste.

Não sei se é isso que sinto, mas, para não me alongar na conversa, eu concordo com ele.

Os domingos são dias que eu considero parados e talvez essa inércia que me "abraça" sem eu perceber.

Os sábados para mim são sagrados: dias de diversão e deleite, não importa se de manhã, tarde ou noite, dentro ou fora de casa.

Mas os domingos?...

Corro para fazer o almoço e estender a roupa, aproveitando o sol seco dessa cidade. Chego na sacada e vejo folhas caídas e o canavial embebido em mormaço.

Os domingos eram diferentes quando criança. Era o dia de ver meus primos, comer em meio a muita bagunça e depois brincar, brincar e brincar.

Mas nos mudamos para o interior e praticamente nunca mais nos vimos.

Eu cresci e casei. Virei adulta e responsável.

Não brinco mais.

Ribeirão Preto, 21 de julho de 2019.




19 de jul. de 2019

CRIANÇA VIADA

Meu caro, minha cara,

Ah! Como é bom fazer aniversário! Dia perfeito para pedir e receber atenção, confete, presente, estar no alvo de muita gente, se sentir especial.

Dia para extravasar, se soltar, falar "não sou obrigada" e ser indulgente com si mesma e exigir o mesmo dos outros.

Ser perdoada dos pequenos pecados, ter uma dose extra de holofotes, usar a felicidade como o embuste perfeito para falar a verdade.

Ter o ego massageado quando, na verdade, queria massagem nas costas e dar o mesmo destino às mãos, pés, olhos, nariz e boca.

Voltar a ser criança e ser perdoada por se querer viada, com muito glitter e salto alto...








Ribeirão, Preto 19 de julho de 2019

15 de jul. de 2019

AI DE MIM...

Meu caro, minha cara,

Hoje a noite, enquanto esperava o horário para começar minha terapia, eu peguei um livro na recepção com sonetos do Pablo Neruda.

Abri o livro ao léu e li um soneto.

Confesso que não consegui interpretar tudo o que li, mas eu gostei do poema. Era bonito, envolvente, cálido.

Quando falei a respeito disso para minha terapeuta, ela citou Clarisse Lispector: "Achar bonito também é uma forma de entender".

No momento em que disse isso, lembrei de um filme chamado "Tempos de paz". Quase no final do filme há um monólogo, retirado de uma peça chamada "A Vida É Sonho", aonde o personagem principal, Segismundo, compara sua vida com a do pássaro, fera, peixe e riacho; todos seres mais singelos e simplórios que o próprio homem, mas mais livres que ele próprio.

Um monólogo que me toca fundo toda vez que o leio...

Ele é um discurso de comparação e tristeza, feito pelo filho de um rei medieval, replicado por um ator judeu fugindo do nazismo, achacado por um torturador brasileiro que não entendeu nada do que se tratava seu discurso, mas se emocionou com as palavras e a tristeza do outro.

Mas este não é o único monólogo que me chama a atenção.

Shylock, em muitos momentos, me representou. Com seu discurso de comparação, ódio e vingança, me fez me sentir confortável em saber que alguém - mesmo que na dramaturgia - sabia que não havia diferença entre eu e o outro e que, por isso, poderia devolver a paga maldita que recebi um dia sem pedir. Direitos iguais, consequências iguais.

"Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito".

Olho por olho, dente por dente.

Ao terminar de contar sobre os monólogos, percebi que trago comigo dois discursos belíssimos, mas com sentimentos que me corroem por dentro.

Ao me deparar com Neruda e seus sonetos quentes, amorosos e sinceros, do que me lembro? Tristeza e raiva...

Ai de mim, ai, pobre de mim...

Ribeirão Preto, 15 de julho de 2019.


14 de jul. de 2019

COMPLEXO COMPLEXO

Meu caro, minha cara,

Quando estava na faculdade de psicologia, um dos mistérios mais aguardados para serem desvendados era o famoso complexo de Édipo.

Em qualquer lugar que se lia a respeito, a resposta era uma só: Édipo matou o pai para ficar com a mãe. A interpretação era quase tão literal quanto: o filho mata o pai (figura que representa autoridade) para ficar com a mãe (figura que representa o prazer).

No primeiro ano, esse assunto foi tratado de uma forma que, confesso, não achei muito inteligente por parte do professor que dava a matéria. Digo isso porquê o "abençoado" do professor "confirmou" que o tal complexo era isso daí mesmo, filho querendo matar o pai para ficar com a mãe, tanto no aspecto figurativo quanto no literal (em alguns casos).

Agora, pense comigo: um bando de cabeças de bagre que mal saíram da adolescência estão na frente de um cara que representa uma figura de autoridade ouvindo dele que o complexo de Édipo não é uma metáfora.

Dá nó em muito cérebro.

Fora a culpa que começa a ferver na cabeça.

Cinco anos se passaram e nada de alguém querer explicar o que era essa joça. Parecia que, cada vez mais, o barato dos professores era colocar teorias e mais teorias complicadas sobre o assunto, tornando as interpretações algo tão truncado e místico quanto desenhar um mapa astral.

Entretanto, no meio do último ano, uma professora baixotinha e de voz fina perguntou para toda uma classe se o conceito do complexo de Édipo estava claro para todo mundo.

O silêncio se instaurou na Terra naquele momento.

Daí, ela explicou: complexo de Édipo é o termo dado ao momento em que a criança percebe que, para viver em sociedade, ela não pode sair fazendo tudo o que dá na telha. Ela tem abrir mão de algumas coisas se quiser outras.

Em suma, ela tem que escolher o que quer para si. No processo, ela também escolhe o que quer rejeitar.

(Nem sempre é o que quer rejeitar, mas o que precisa rejeitar... E isso dói)

Por isso que muita gente gosta de dizer que "cada escolha é uma renúncia" ou então que "cada SIM esconde infinitos NÃOS".

Mas por que eu trouxe esse assunto?

Talvez porque eu esteja num momento em que eu tenha que escolher o presente ao invés de universos paralelos.

Talvez eu tenha que escolher manter o que eu tenho. Ou mudar tudo drasticamente.

Talvez eu não esteja com medo de escolher algo que me faça feliz, pois talvez eu ainda nem tenha pensado o que me faz feliz de fato.

E essa é a parte mais triste de tudo...

Ribeirão Preto, 14 de julho de 2019

3 de jul. de 2019

OLOR

Meu caro, minha cara,

Lembro de um livro que eu li, já faz um tempo, que conta a história de um cara que tinha o olfato mais apurado que já existiu. entretanto, ele próprio não tinha cheiro. O fato o tornou desesperado: era como se não existisse. então, ele foi atrás do "perfume da existência" (ou do "amor", não me lembro muito bem). Para isso, ele precisou coletar o odor de outras pessoas - mulheres, no caso. Pena que, para isso, ele as matava.

O livro se transformou em filme (com o mesmo nome) e, para mim, o filme foi uma droga por um único detalhe: mudaram o mote para os assassinatos que ele cometia.

Mas, desde que o li, sempre me lembro dele em momentos aleatórios. Pelo menos, ultimamente tenho me lembrado muito dele.

Tudo porque perdi o meu perfume.

A empresa que o fabricava está com falta da matéria prima principal. Caso volte a produzi-lo, será ó daqui uns anos, quando o manejo da seiva voltar a ser sustentável.

Enquanto isso, procurei substitutos e quase achei algo de que gostasse.

Mas ainda não é o meu cheiro.

Ontem à noite meu marido me apresentou outro perfume. Era bom, muito bom.

...mas ainda não é o meu cheiro...

Assim como o rapaz do livro, eu busco por essa existência que, para ele, era o tal perfume. Sem ele, o rapaz apenas existia e ocupava espaço. Quando ia embora de algum lugar, o lugar sumia. Tragicamente deixava de existir.

Dizem que a memória olfativa é a memória mais primitiva que temos.

Concordo.

Como mostrado no livro, não ter algo para se deixar para trás (como um perfume) é não ter algo para se lembrar. É não ter vínculos. E não nos dedicamos ao que não estamos vinculados.

É muito ruim a sensação de se sentir apenas como matéria...

Ribeirão Preto, 03 de julho de 2019