10 de mai. de 2021

A ESTRELA E A CRUZ

 Meu caro, minha cara.


Quando o Marcelo morreu, estava no 3º ano do colégio.

Foi uma tragédia: o rapaz tinha 19 anos, havia acabado de ser efetivado na empresa em que tinha feito estágio, estava namorando a garota dos seus sonhos. Próximo a Brasília, um caminhão perdeu o freio e lá se foram quatro alminhas e um Uno Mille para o espaço.

A gente se conheceu quando eu estava no primeiro ano e ele, no último. Foi implicância à primeira vista, implicância que só existe entre irmãos. Encher o saco um do outro era a maneira que a gente tinha de demonstrar carinho; cada um mais empenhado que o outro em achar o xingamento perfeito.

Quando eles acabavam, nós ríamos.

Era legal.

Mas Marcelo morreu e lotamos uma van para ir ao velório, lá em Pirassununga. Caixão fechado, metade da cidade no velório, praça lotada na missa. Chorávamos. Chorávamos como carpideiras. Triste é testemunhar um futuro que prometeu e não cumpriu.

Triste não ver o futuro se cumprir...


Quando ficamos sabendo que a Glória morreu, ficamos pasmos. Fazia um ano que a gente tinha se formado na faculdade e a Glória era aquela pessoa super alto astral. Também, com um marido apaixonado e duas filhas espirituosas, quem não seria alto astral, não é verdade?

Mas a mãe da Glória morreu e a Glória se entregou à tristeza. Tanta tristeza que o coração parou. Parou "do nada" e não quis mais funcionar. Liguei para a clínica escola para saber se era verdade e o pessoal da administração confirmou: parada cardiorrespiratória. 

Ao mesmo tempo em que ficamos sabendo sobre a Glória, também soubemos da Roberta. Ela foi a primeira pessoa que conheci na faculdade. Ela tinha o cabelo comprido e um tiquinho só mais claros que o meu. No terceiro ano, ela largou o curso. Desenvolveu transtorno bipolar, condição que eu não acho que souberam lidar muito bem. Pelo menos foi o que eu entendi quando me descreveram o que acontecia com ela ao tomar os remédios. 

Um ano depois da formatura, na mesma semana da morte da Glória, a Roberta se enforcou em casa. Como chorei aquela noite... chorava por elas, pelas famílias, pelos futuros interrompidos. Chorei pelas falhas e pelas ausências. Pelas lições que aprendi. Chorei pelo riso da Glória e o olhar doce da Roberta.

Triste ver tanta beleza ir embora...


Um mês antes delas, morre minha vó Odila. Já falei sobre isso em um texto que escrevi anos atrás. Ela tinha quase 96 anos e estava sofrendo. A derrocada dela começou dois anos antes, quando sofreu uma queda e quebrou o braço. Foram dois anos difíceis para ela e a única coisa que me perguntava era quando que aquele sofrimento iria acabar.

Os filhos e outros netos ainda achavam que ela milagrosamente iria melhorar e ficar mais forte do que nunca, mas não deu. Ela se foi no começo de 2006 e eu confesso que fiquei muito aliviada por ela. Não chorei. Não havia o que lamentar, apenas respirar. Minha mãe ficou ressentida comigo, por não ter chorado, mas uma vida como a dela, com as coisas que ela viu e fez, não é algo que deva ser lamentado. Ali o futuro se concretizou. Veio, ficou e passou.

Ela ultrapassou o futuro.


Dez anos mais tarde minha outra avó morreu. Morreu dormindo, enquanto tirava um cochilo de manhã, no mesmo dia em que fiz a minha cirurgia do joelho. Na época eu namorava o cara que agora é meu marido. Ele me ligou e perguntou como estava - se estava nervosa, com medo, apreensiva da cirurgia. Disse que estava bem e que minha avó havia morrido. Ele ficou de cara: "Nossa! Você está bem?". Estava tudo bem. Ele ficou perplexo, achou que era frieza, mas não era.

Era mais um vez o futuro concretizado. O resultado das escolhas de toda uma vida ali, expresso em um "tá tudo bem" tranquilo e aliviado.

Quem não a conheceu como nós a conhecemos irá dizer "coitada...". Quem acha que a conheceu irá dizer "tadinha...". Quem a conheceu de fato só poderá dizer uma coisa:

"Foi tarde".


Neste último sábado fomos para a cidade em que meus pais viviam buscar uma grande quantidade de coisas separadas e que decidimos doar para um asilo. Fazia um mês e meio que meus pais haviam morrido, vítima da COVID19. A última vez que os vi foi no enterro: minha mãe se foi no dia 12 e meu pai, no dia 21. No dia sete ela internou e eu fique de acompanhante com ela no quarto. Pensei que poderia trabalhar lá do hospital, mas após o diagnóstico de COVID19 ser confirmado, não dava mais para não dar atenção total para ela.

Pois aquele diagnóstico foi o dobre da morte para minha mãe. Ela se entregou ali.

É horrível ver isso: ver a esperança ir embora e entender que aqueles olhos agora só suplicam para que tudo acabe logo - e para sempre.

Ela se foi na sexta-feira e tive a cruel tarefa de falar para meu pai que a esposa havia morrido. Foi a única vez que ouvi meu pai chorar. Chorava por ele e com ele. 

Como aquilo foi cruel...

No sábado nós a enterramos. Minhas tias foram ao cemitério, mas nem chegaram perto. "Somos do grupo de risco", disseram de longe.

À noite, meu pai e eu conversamos. Ele tomou sopa e disse que a dias não comia algo com tanto apetite. Conversava comigo e parava no meio da frase, pois a frase havia ido embora. Foi naquela noite que eu fiquei sabendo de muita coisa sobre a minha família. Como se a morte da minha mãe desobrigasse meu pai a guardar qualquer segredo ou impressão sobre tudo e todos - inclusive sobre si.

Ficamos até de madrugada conversando. Porém ele estava cansado, muito cansado...

No dia seguinte o cansaço não melhorou. Perguntava se estava tudo bem e, depois de muita insistência, ele falou que mentiu: teve febre e dor de garganta nos últimos dias (mas não queria ir ao médico). À noite meu irmão chegaria e eu iria embora. Ele comeu mais um pouco de sopa, mas agora o apetite diminuiu. Deixei meu pai no domingo, para descobrir que, na segunda-feira, ele estava com a saturação muito baixa. Mesmo assim, ele não queria ir ao pronto atendimento ser atendido. 

Surtei com ele no telefone. Não estava pronta para enfrentar tudo aquilo de novo. Meu irmão conseguiu trazê-lo, mas já era tarde: na quarta-feira ele foi intubado e ele morreu no domingo.

Minha última conversa com ele foi pelo whatsapp e foi um longo monólogo sobre todas as coisas que eu deveria tomar conta quando ele ficasse inconsciente.

Na segunda, chegamos no cemitério e o enterramos. Era inacreditável e totalmente bizarro o que estava acontecendo. Um mês e meio depois, neste fatídico final de semana, fui ao cemitério visitar os túmulos deles pela primeira vez. Aos pés da lápide dela, eu só me perguntava "por que você desistiu? por que?".

Na dele, perguntava "por que você quis bancar o forte?".

E chorava. Chorava de soluçar.

Nessa véspera do dia das mães, a única coisa que fazia sentido é que nada impede o tempo de passar por nós. E que nem sempre a recíproca é verdadeira...


Agora, sou eu que encaro o tempo... E pela primeira vez, sinto que ele me encara também.


Ribeirão Preto, 10 de maio de 2021.