27 de jul. de 2021

PODERIA TER SIDO (MAS NÃO FOI)

 Meu caro, minha cara.


"Um bom motorista passa de uma faixa à outra sem passar por cima do olho de gato"

"Mas de onde você tirou essa ideia?"

"Essa é apenas uma mostra da minha imensa sabedoria de vida!"

"Vá à merda, pai"

"Olha... Me respeita, senão eu te deserdo!"

"Deveria ter feito isso antes de morrer, agora não dá mais"

"Mas você continua canalha!"

"Igual ao meu pai..."

"Canalhinha..."

(rimos. Ou melhor: rio sozinha, no meu carro, voltando para casa depois do trabalho bem à noitinha)

"Olha o radar"

"Tô olhando"

"Deu seta pra mudar de faixa?"

"(expressão de enfado)"

"Tu me respeita, heim? Ainda sou teu pai!"

"E o que vai fazer? Puxar meu pé à noite?"

"Vou! E com a mão gelada, ainda por cima!"

"Affff... Tá bom, né? Vai te fazer feliz? Então faz. Aqui tá calor mesmo..."

(gritos e protestos hipotéticos, tirados do meu compêndio pessoal sobre o Seu Benedito)

...

"O que é que este filho da puta tá fazendo grudado na traseira do seu carro?"

"Não sei e quero mais que vá pra puta que o pariu. Tô cansada e se essa bosta dessa moto não sabe ultrapassar, eu vou meter o pé no freio pra ver se essa desgraça vaza daqui"

"Muito bem, deixa esse bosta passar"

(a CG me corta gritando pela esquerda, enquanto entro em outro trecho do anel viário)

...

"Pai"

"Oi"

"Tô com saudade"

"Também tô, filha"

"Queria que estivesse aqui comigo agora, tendo essa conversa de verdade, como dois bons ranzinzas..."

"Eu também, meu coração, só que agora você só vai conseguir fazer isso se imaginar"

"Eu sei"

...

"Pai"

"Que é, Carolina?"

"Daqui a pouco eu chego em casa. Você vai embora agora?"

"Vou, mas amanhã você vai pegar o carro, não vai?"

"Vou"

"Então amanhã a gente se fala mais, tá bom?"

"Tá bom..."

(paro o carro na frente de casa, desligo o motor e dou tchau para o dia e para ele...)

(como eu sinto sua falta, papai...)


Ribeirão Preto, 27 de julho de 2021



18 de jul. de 2021

QUASE QUE LEVO UMA SURRA

 Meu caro, minha cara.


Às vésperas de fazer aniversário, com o coração pesado, triste, com raiva e cheio de choro e mágoa, resolvi pôr em prática um conselho e fui fazer uma coisa do qual gostasse muito.


Propus uma volta de moto com meu marido e fomos ao parque depois do café.


Enquanto ele ficou sentado num dos bancos, cabeça abaixada prestando atenção no celular, fui caminhar com a câmera na mão, crente de que não acharia nada por causa do tempo nublado e seco.


Mas me enganei. Ainda bem.


Perto do campo principal, havia vida. Muitas, grandes e pequenas. Fotografei várias e voltei contente.


Na volta, vi a última vida que queria fotografar: um galo enorme, maior que todos os que já tinha visto.


Fui devagar e ajustei o zoom da câmera. Só que ele me notou.


E não gostou.


Quando percebi, ele mirou no meu rumo, ciscou no chão com raiva, estufou o peito e bateu as asas. 


Pensei: "Me fudi!"


Sai de mansinho, com ele me escoltando para fora da passarela. Quando ele viu que eu (ou a minha câmera) não era uma ameaça, sossegou e foi embora.


E eu ri. Ri como a muito tempo não ria. Um riso que pensei que estava extinto.


Até o momento, aquele galo me deu o melhor presente de aniversário que poderia receber...


Ribeirão Preto, 18 de julho de 2021.