9 de nov. de 2022

MICKEY ENCARDIDO

Meu caro, minha cara...

Encontrei o Mickey Encardido na Mogiana, quase chegando na Brasil. Tinha um papel alumínio com um sanduíche de pão de forma numa mão e a outra seguia estendida.

O rosto já não tinha mais nenhuma expressão. Acredito que a causa são os anos de sujeira e indiferença alheia que lhe fora transferida.

E não vou diminuir meu papel nisso, pois também mantive minha janela fechada.

Às vezes indo, às vezes voltando, encontrava o Mickey Encardido com pele de noz no mesmo quase cruzamento, com a mão aberta e o rosto vazio.

Uma vez tinha moedas no console e baixei o vidro. Levei a minha mão até a dele e despejei as moedas.

"É tudo o que eu tenho".

Não era. Eu tinha mais, tenho mais. Não ali, naquele agora, mas sei que tenho mais a dar e a fazer.

Mas do coração à mão há um mundo de distimia.

Naquele segundo de auto indulgência toquei em sua mão. A pele cor de noz também tinha textura de noz.

Casca dura abrigando fruto destroçado.

Abriu o verde e segui em frente.

Seguia para minha casa.

Ele seguiu no meu retrovisor. Seguiu na casa dele.


Ribeirão Preto, 09 de novembro de 2022.



22 de jun. de 2022

CÉU SEDA

 Meu caro, minha cara.


Saio do trabalho com o sol se pondo.


Adoro o outono por causa do céu: ele é quente e tem as cores muito, mas muito saturadas.


Dessa vez, não foi diferente: céu perfeito de fim de dia, vermelho e rosa e laranja e azul e roxo, um céu macio que, se pudesse, vestiria a gente, cobriria o corpo com suavidade sem fim.


Agora, o céu está no meu retrovisor. Paro de prestar atenção nele e passo a olhar nos outros motoristas.


Céus... compraram a carteira, só pode: festival de motoqueiros impacientes, que entram na contramão só para ganhar mais três metros de rua. Os carros não ficam atrás. Ou andam no meio da rua, ou cortam a sua frente para andar em segunda. 


Eis-me lá, praticando a paciência que não tenho.


Olho mais uma vez no retrovisor e vejo um vulto. O vulto vira uma bicicleta. Nela, um pai leva seu filho para casa. Bicicleta, bermuda, chinelo, cadeirinha, 10 milhões de cintos de segurança, mochilinha e duas perninhas gordinhas balançando, sacudidas pelo asfalto irregular.


O pai toma fôlego e atravessa a rua, dosando as pedaladas para evoluir no caminho sem se meter na frente de algum carro. 


O rosto do menininho, que não tem nem um ano de idade, era só curiosidade por um mundo que ainda nao entende. O rosto do pai, era de esforço e fé. 


Aquela fé de se fazer o que é certo e de saber que há bons frutos no futuro.


Aquele amor saturado de mais amor. O amor e a esperança que abraçam e aquecem sem tocar. 


O semblante esculpido outono após outono, que espera o prolongamento de si com alegria modesta e paciência.


Amor com panturrilhas torneadas e orgulho daquelas perninhas.


Amor macio.


Amor seda...


Ribeirão Preto, 22 de junho de 2022




10 de jun. de 2022

FAMA, VINHO E ÁGUA

Meu caro, minha cara.

Todas as noites eu sonho. Sonho muito. A diferença de hoje é que eu lembrei do meu sonho.

Sonhei com um dia aprazível. Um típico dia idílico de primavera (embora eu ache mesmo que os dias idílicos residam no outono).

No sonho, cheguei a uma festa onde só haviam pessoas famosas.

Não sabia quem elas eram, na verdade. Disse que eram famosas porque todas agiam como se fossem. Todas bebiam como se fossem.

No fundo, sabia que era uma festa de gente que queria aparentar o que não era. Pois uma festa só com gente famosa não seria tão grande assim.

Cheguei à festa de carro, dirigindo por uma rodovia. Embora onde eu estava o tempo estava agradável, o fundo do horizonte prometia uma tempestade como nunca havia se visto. Nuvens cor de chumbo evoluiam umas sobre as outras, produzindo os raios mais bonitos, capazes de tinguir de dourado e vermelho as curvas mais proeminentes de cada formação.

Era algo espetacular de se ver.

Cheguei na festa. Era tudo o que diziam. Gente bonita, pretensamente bem nascida e bem criada.

Ênfase no "pretensamente".

Vi isso quando os garçons distribuíam bebidas. Embora eram muitos, muitos convitados não tinham paciência de esperar as bebidas chegarem e iam direto às tinas de gelo buscar a tônica para seu gim.

O mesmo acontecia com as garrafas de vinho branco. Sei disso porque provei um Shiraz maravilhoso, mas não consegui outra taça porque os espertos bem nascidos e bem criados tomavam as garrafas dos engradados antes de qualquer um.

No meio do caminho, fui buscar o garçom que havia me prometido o Shiraz. O dia morno e rosado agora estava prestes a virar úmido e frio, mas ninguém notava. Vi o garçom, um senhor gordinho e de barba e cabelos brancos, esperando os bem nascidos e bem criados se afastarem da boqueta do bar para ver se ainda havia sobrado alguma garrafa. Naquele momento eu notei que não haveria nada do meu gosto para mim. Só o garçom ainda tinha esperança.

Voltei para meu lugar naquele campo por outro caminho. Um caminho mais quieto, onde não via mais ninguém. Digo campo pois era um lugar plano e gramado, mas também porque a festa era num antigo estádio em ruínas. 

Acho que o pessoal que organizou a festa pensou que um estádio em ruínas, com arquibancadas de concreto rachado cheio de samambaias, seria vintage.

Sentei na arquibancava velha com as corajosas samambaias. Ao terminar meu copo, me virei e fiquei assustada com o que eu vi: estava separada do restante da festa por um paredão de água escura, água da mesma cor que as nuvens que havia visto antes.

Essa parede de água era muito alta, a ponto de erguer a cabeça para ver o topo - como faço quando vejo um grande prédio.

Fiquei aterrorizada. Pensei que em algum momento toda aquela água cairia e eu seria atingida, mas não aconteceu de fato. Consegui me esgueirar pela beirada da arquibancada e voltar para as outras pessoas, mas não senti nenhum alento quando as vi. Ser emparedada pela água só serviu para confirmar que aquelas pessoas não tinham nada a ver comigo.

Olhava para todos os lados, mas sem a angústia de ser esmagada por toneladas de água. Procurava um jeito de sair dali. Desisti do vinho, desisti de mostrar os dentes para o pessoal bonito e educado que encontrava.

Só que perceberam isso. E por isso começaram a me olhar torto, com desdém.

(esse momento é que o sonho muda, mas mesmo havendo esse corte, o sonho não mudou)

Fui expulsa. Ou fugi. Não consegui entender se as pessoas que me direcionavam para fora estavam me ajudando ou não. Só sei que saí de lá e "caí" em um mar de peônias de papel de seda, grandes como camas, macias como camas. Fiquei maravilhada...

Saí do campo das peônias gigantes feliz, finalmente sentindo que o dia morno e cor de rosa era para mim. Não era, mas não me importei. Entrei em outra festa sem querer, mas fui super bem recebida. Era o encontro anual de amigas de área de atuação, uma festa com mais pompa, mais enfeites, mais vinho, mais comida.

No céu dessa festa não haviam nuvens de chumbo.

Para minha surpresa, ela acontecia ao lado da festa da gente bonita e bem educada. Entramos nessa festa de braços dados, a anfitriã das peônias e eu. Todos nos olhavam. Ou melhor: olhavam para mim. A expulsa, a fugitiva, sabe-se lá o que eu era.

A que não se encaixou, voltou. E de uma festa onde o vinho não era roubado da boqueta da cozinha por gente bem nascida.

Ribeirão Preto, 10 de junho de 2022



27 de abr. de 2022

Roy e Decker

 Meu caro, minha cara.


Decker chega no prédio carcomido e sobe pelo elevador. Roy o espera e isso não é segredo para ninguém.

Os dois lutam. Ou brigam. Sei lá... Muita porrada misturada com parede que desaparece nessa história...

Sobe andar, desce andar e, por fim, param no telhado.

Chove demais nessa noite.

Demais...

Mas tudo que começa, termina.

E o princípio do fim foi um olhando para o outro, sentados, na chuva.

"Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-C brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva."

A cabeça platinada se abaixa, os olhos se fecham, e lá se foi ele para o vazio da inexistência - o mesmo destino que Decker terá um dia. O mesmo destino que a água que cai dos olhos tem ao tentar concorrer com aquela que cai do céu...


(...)


Ribeirão Preto, 27 de abril de 2022.