31 de dez. de 2019

FELIZ ANO NOVO

Meu caro, minha cara.

O que eu vou falar não é uma garantia, mas eu acho que o primeiro passo para se ter um feliz ano novo é estar vivo.

Porque aquele senhor que vimos ontem à noite na estrada, com a cabeça grisalha dependurada para fora da janela do carro, com a poça de sangue ao chão, depois de ter invadido a pista oposta e se chocado com um carro e uma moto, sem usar o cinto de segurança...

Acho que, pra ele, esse lance de feliz ano novo não vai rolar...

Ribeirão Bonito, 31 de dezembro de 2019


28 de dez. de 2019

DENTRO DA NORMALIDADE


Meu caro, minha cara.

Anos atrás, quando eu era solteira e fazia o que dava na telha, eu ia mais a um dos parques da cidade aos finais de semana.

Romanticamente, escolhia um livro, ia até o parque com meu carro, escolhia um lugar para sentar e começava a ler.

Depois de cinco minutos, desistia de ler e ficava olhando as pessoas que passavam por lá.

Aliás, observar as coisas e as pessoas é um dos meus passatempos favoritos.

Um dia, durante a Agrishow, fui para o parque. Muitas crianças, muitos pais, mães e avós correndo atrás delas. Muitas pessoas fazendo suas caminhadas.

Quem destoou da paisagem foram as duas meninas loirinhas que subiram a ladeira em cima de seus saltos meia-pata.

Era... umas quatro da tarde? Não lembro bem. Mas era à tarde. Em meio a todas as pessoas que combinavam com o ambiente, essas duas apareceram e descombinavam tudo. Se estivessem em uma boite, combinariam, mas não estavam.

E não sei se alguém notou o detalhe, mas era o final de semana da Agrishow...

As meninas (não vou dizer mulheres, porque eram muito novinhas) chegaram no parque com seus saltos altos, suas bolsas enormes, seus vestidos e saias minúsculas e suas maquiagens borradas.

Foram em direção ao banheiro.

Cerca de 20 minutos depois, sairam.

Maquiagens refeitas, roupas trocadas, mesmos sapatos, perfume.

Sairam do mesmo jeito que chegaram: cagando e andando para quem prestou atenção nelas ou fez algum julgamento de valor.

(...)

A vida não é fácil...

Ribeirão Preto, 28 de dezembro de 2019.


19 de dez. de 2019

"VAI, MACARRÃO!"


Meu caro, minha cara.

Isso foi o que ouvi quando voltava para o carro depois de sair do ortopedista.

Quem gritou foi um carroceiro. Sabe o tipo? Pele da cor e da textura de tronco de flamboyant, barba branca e retorcida, cantando alto pelas ruas, magro e rijo.

Aposto que tinha um percentual de gordura corporal muito menor do que muito crosfiteiro...

E o "Macarrão"?

Macarrão era o cavalo que puxava a carroça, abarrotada de caixas desmontadas de papelão.

Esperei eles passarem, dei seta e sai. Na esquina, eu ia virar à esquerda. Eles também viraram. Eles foram primeiro, depois um caminhãozinho e uns dois carros. Macarrão ia na frente, lento como o trânsito que estava à frente dele.

O motorista do caminhãozinho ficou puto com Macarrão e o carroceiro. Na esquina seguinte, ele acelerou e cortou Macarrão pela esquerda. O baú machucou a copa de uma árvore que não tinha nada a ver com a história.

Pouco prestou a manobra: como eu disse acima, era o trânsito que estava lento. O caminhãozinho parou logo em seguida. O carroceiro parou de cantar e ficou mexendo com o motorista. "Não tá com pressa? Então corre agora! Vai, apressado!"

Não usou nenhum palavrão...

Tudo isso me deixou nostálgica. Pois quando era criança haviam muitos carroceiros com seus pangarezinhos magrelos pela cidade.

Alguém dito "antenado" poderia dizer que eles são "seres analógicos em um mundo digital"...

Mas eles são tão analógicos quanto o velhinho que atravessa a rua no farol fechado, usando boné e sapato social.

Tão analógicos quanto a minha menstruação, que chega antes e depois da data marcada no meu aplicativo.

Tão analógicos quanto a mulher grávida que segurava a barriga enorme enquanto deixava claro no rosto que sentia dor. Ao entrar no carro que estava parado ao meu lado no sinal fechado, disse ao marido: "Veio mais uma contração"...

Tão analógicos quanto o violão que escuto agora.

Tão analógicos quanto o macarrão com molho de atum que há tempos eu não faço e me peguei morrendo de saudades de fazer e comer...

Ribeirão Preto, 19 de dezembro de 2019.


14 de dez. de 2019

PLANTINHA

Meu caro, minha cara.

Tenho uma plantinha que eu gosto muito. É uma orquídea, que ganhei no dia dos namorados, dada pelo meu marido, num esforço de mantermos nosso relacionamento com gestos românticos e convencionais.

Acho que plantas são coisas lindas, mas assim como as crianças e os cachorros, não me vejo com capacidade técnica ou emocional para ter um.

Gatos... São outra história...

Mas a plantinha... Ah... Dou até banho, para lavar as folhas.

Converso.

Faço carinho.

Dou beijo.

Sorrio.

É bom ser convencional de vez em quando.

Mas só de vez em quando.

Ribeirão Preto, 14 de dezembro de 2019.


6 de dez. de 2019

BASTAM DOIS...

Meu caro, minha cara.

Eu quase bati o carro ontem.

E a culpa seria minha.

Pela minha impaciência, pressa e intolerância com a falta de atenção e falta de noção alheia.

Mas, para que o possível acidente acontecesse, bastariam dois carros...

Queria dizer que bastam dois... para que um beijo seja dado. Vi um casal se beijando quando estava no caminho para o trabalho e senti o quanto isso é bom.

Queria dizer que bastam dois para... que algo seja dito. Vi duas pessoas conversando, cada uma de um lado da avenida. Gritavam. Gesticulavam. Apontavam. Mas faziam isso com suas bocas, corpos e mãos, não com celulares.

Queria dizer que bastam dois para... flertar. Bastam dois para... terem um filho. Bastam dois para... que um sexo ótimo aconteça.

Mas ontem, dois carros, conduzidos por pessoas diferentes, bastariam para dizer que, para que um encontro aconteça, bastam dois. Pelo menos dois.

E isso nunca será garantia de ser algo bom...

Ribeirão Preto, 06 de dezembro de 2019.


4 de dez. de 2019

TÔ COMO...

Meu caro, minha cara.

Tô como aqueles poetas que dizem que estão amando o amor, estão apaixonados pela paixão, estão odiando o ódio...

Tô como aqueles adolescentes que curtem fossa, que olham para o infinito, para o horizonte, para o whatsapp, esperando, esperando, esperando...

Tô como aquelas ditas "moças casadoiras" que cuidam dos detalhes, querem tudo perfeito, esperam que sejam notadas, mas não são...

Tô como os estudantes estudiosos, orgulho dos pais, exemplo dos professores, ranço dos colegas, com medalhas prometidas, estrelas à sua espera e ansiosos pelo 10 nas provas convencionais...

Tô como as pessoas solitárias. Que sentam nos bancos dos passeios públicos. Olhando a vida. A brisa. Os pássaros. As marés. As pessoas. As nuvens. O sol. A lua. O tempo. As rugas. As decisões. As oportunidades. As desilusões. As vitórias. Os infortúnios. Os desejos. As dores. Os gozos. Os arrependimentos. A plenitude. A calma. A quietude...

Ribeirão Preto, 4 de dezembro de 2019.


2 de dez. de 2019

ÁRVORE DOS GRITOS

Meu caro, minha cara.

Sou daquelas que, quando gosta de um livro, sempre lê ele de novo.

Têm livros que eu já li umas... seis vezes?

Por aí.

Para mim, livro bom é aquele que ensina alguma coisa pra gente. Se só tem uma historinha bobinha, passo.

Mesmo que tenha uma multidão falando "puta lição de vida"...

Em um deles eu descobri a árvore dos gritos.

O nome é autoexplicativo: é uma árvore longe de tudo e de todos, onde você pode contar um segredo, soltar os cachorros, chorar, etc.

Atualmente, venho precisando de uma.

Mas, por falta dela, vou arrumando uns substitutos.

Choro debaixo do chuveiro abraçada no meu marido.

Bebo água loucamente.

Tomo dorflex como se fosse bala.

Já grito um "bom-dia-só-se-for-para-você" em plena segunda feira.

E, finalmente, grito com meu chefe.

Ele dá risada.

Graças aos céus que tenho um chefe que dá risada dos meus ataques histéricos e de um marido que me abraça no chuveiro...

Ribeirão Preto, 02 de dezembro de 2019.


28 de nov. de 2019

PERDÃO. PERDOO. PERDOAR.

(parte 3)

Meu caro, minha cara.

Não havia criança mais meiga nesse mundo. Pena que não o queriam meigo.

Deve ser difícil ser o primeiro filho. Afinal, meus pais "aprenderam" a ser pais com ele.

Comigo, foi só confirmação da "regra".

O menino perfeito, bom filho, bom aluno, bom irmão, bom profissional, bom cidadão, bom marido.

E ele é tudo isso.

Mas o quanto não custou a ele...

Hoje, eu sei.

Pena ter demorado tanto para saber disso...

Ribeirão Preto, 28 de novembro de 2019.

26 de nov. de 2019

PERDÃO. PERDOO. PERDOAR.

(parte 2)

Meu caro, minha cara.

Foi por causa daquela fita K7 que eu descobri tudo. Nela havia a história do meu bisavô (avô do meu pai) narrada por um homem de voz imponente, acompanhada de música suave e sonoplastia de águas rolando.

Meu bisavô era barqueiro no Amazonas e minha bisa sempre o acompanhava. Por isso que minha vó e seus irmãos eram criados pela tata.

Quando meu pai pôs a fita no toca fita, ouvi o nome do meu avô. E percebi que ele tinha o nome do meu bisavô. Mas, ao final, não tinha "Neto". Tinha "Filho".

Como que alguém havia cometido aquele engano?

Perguntei a ele.

Uma, duas, sei lá quantas vezes.

Até que ele gritou comigo.

"Porque sua vó não casou!"

Ele voltou o rosto para o toca fita que ainda funcionava.

Eu fiquei parada na porta do quarto, em choque.

Ele nunca mais falou nada a respeito.

A minha mãe contou que ele também não conversa isso com ela.

Fiz as contas e soube que minha vó teve meu pai aos 25 anos de idade.

Quando dei meu primeiro beijo (já contei sobre isso antes), ele ficou sabendo e quase me deu uma surra. Sorte que consegui me trancar no banheiro antes.

(...)

O tempo passou e eu fiz 26 anos. Estava formada na faculdade, trabalhando e enfurnada na casa dos meus pais, na mesma cidade em que meus pais escolheram se enterrar.

Eles estavam felizes. Afinal, nada rejuvelhece mais um pai e uma mãe do que subjulgar um filho adulto.

Naquele aniversário a relação do meu pai comigo mudou. Ele estava feliz. Muito feliz.

Tenho para mim que tanta felicidade era pelo fato de eu ter chegado aos 26 sem filho algum.

Acho que nunca haverá filho algum...

Ribeirão Preto, 26 de novembro de 2019.

25 de nov. de 2019

PERDÃO. PERDOO. PERDOAR.

(parte 1)

Meu caro, minha cara.

A primeira vez que vi uma foto da minha mãe grávida foi a muito tempo. Ainda morávamos no apartamento da Ponta da Praia, em frente ao quartel.

Na foto, minha mãe estava vestindo um macacão vermelho, sem mangas. Estava sentada na cama, encostada na cabeceira, com cabelo curto, óculos e pernas cruzadas sob a barriga enorme. Fazia uma roupinha para meu irmão, seu primeiro filho.

Lembro que ela contou que, quando estava já em estado avançado da gestação, ela tropeçou num tapete que estava um pouco levantado e, para não cair sobre a barriga, jogou todo o peso do corpo sobre o joelho. Desde então, o joelho ficou zuado e ele puxou o bonde de todas as cirurgias ligadas à parte ortopédica que ela teve que fazer desde então.

Muito tempo depois ela me contou que foi difícil para ela ter dois filhos longe da mãe, pois minha avó (mãe dela) morava em Coqueiros ainda e não tinha como ir até ela. Não sei o porque desse "não tinha como", mas isso era entre elas.

Mais difícil ainda era não ter o apoio da mãe e viver com a hostilidade da sogra (mãe do meu pai), sempre presente, morando na mesma casa, dando pitacos e ordens, subjulgando a nora, moça do interior acoçada por uma postura arrogante e imperiosa de uma mãe solteira.

(...)

Sei que ela quis me proteger de coisas assim: a falta de estudo que te torna dependente de alguém; a falta de capacidade técnica e intelectual que te deixa anos luz atrás no mercado de trabalho; a influência da péssima história de vida da sogra; a "salvação" da minha "alma imortal". Sei porque ela fez tudo o que fez.

Devo perdão a ela por tudo o que fiz, pensei e falei? Até tenho.

Mas sei que não vai dar conta de ouvir o porque de tantos pedidos de perdão.

Até porque, a conhecendo como eu a conheço, ela não entenderá que o que fez me rasgou em mil pedaços...

Ribeirão Preto, 25 de novembro de 2019.

21 de nov. de 2019

14 de nov. de 2019

AH, GERTRUDIS!

Meu caro, minha cara.

"Do nada", lembro da seguinte cena:

Tita recebeu flores de Pedro e a mulher dele ficou putinha, mas ficou na dela.

Eram rosas brancas que foram abraçadas com um "je ne se qua" intenso.

Os espinhos feriram a Tita durante esse abraço e as gotículas de sangue que surgiram tingiram as pétalas de vermelho.

Tita foi correndo para a cozinha com o buquê e resolveu preparar codornas com pétalas de rosas para a família.

E pôs naquele prato tudo o que sentia por Pedro...

O jantar foi, no mínimo, intenso: Mamãe Elena comeu e foi para seu quarto chorar pelo antigo amante. Pedro e Tita devem ter ficado com um tesão do caralho, mas, mesmo assim, cada um na sua. A mulher de Pedro (irmã de Tita e que, para este texto não vai te nome mesmo porque eu a detesto tanto que nem tenho o trabalho de ir atrás ver qual é) ficou "indisposta". Talvez porque recalque deixe as pessoas doentes.

E teve a Gertrudis!

Irmã mais velha de Tita e também solteira, Gertrudis começa a sentir "calores". Vai para o chuveiro (que fica do lado de fora da casa), mas não adianta nada: a água que lhe cai no corpo evapora e emana uma nuvem com perfume de rosas, que é espalhada pelo vento e atinge o nariz do general revolucionário, que estava passando com seu cavalo nas redondezas.

O calor era tanto que a casinha em que ficava o chuveiro pegou fogo (era de madeira...). Gertrudis foge pelo campo, a nuvem de rosas atrás. Encontra o general revolucionário, que a puxa para seu cavalo e, no balanço do galope, lhe tira a virgindade.

O calor continua e o general revolucionário não dá conta.

E, como um bom personagem não-hipócrita que é, deixa Gertrudis num puteiro para que ela dê à vontade pra quem a quiser comer.

Só quando o calor de Gertrudis diminui é que o general revolucionário volta para buscá-la e tomá-a como esposa, companheira de cama, vida e revolução.

(...)

Não entendeu nada? Dá um Google e vá ler o livro...

Ribeirão Preto, 14 de novembro de 2019


10 de nov. de 2019

DO COMEÇO E AO FIM E AO COMEÇO

Meu caro, minha cara.

Ao sair do chuveiro, não se seque.

Vá para um espelho. Mas não um mequetrefe. Um em que você se olhe.

Vire de um lado, do outro, dê quase meia volta. Você tem curvas e retas para mostrar e esconder.

Agora sim, se seque. De baixo para cima para baixo. De um lado e de outro e de outro.

Apenas olhe.

Depois... Escolha.

Eu, atualmente, vou de hidratante.

Então, coloque a roupa. Camada por camada.

Pronto... Você passou a ser um ser humano "normal". Pronto para ser desmarcado por alguém que você quer que te desmascare.

Pétala por pétala...

Ribeirão Preto, 10 de novembro de 2019.



Fiódor Dostoievski


9 de nov. de 2019

A BENÇÃO

Meu caro, minha cara.

"A gente só aprende aquilo que, no fundo, a gente já sabe".

Essa foi uma das muitas frases que ouvi na terapia esta semana.

Não que a terapia seja uma feira de frases prontas, mas uma frase como essa só é considerada uma "frase pronta" quando a gente ainda não "sabe" do que ela se trata.

Dito isso, falo sobre um vídeo que recebi hoje, que trata do tema "gratidão".

(Porque hoje todo mundo fica falando "gratidão" e "namastê" como se isso fosse mudar o mundo)

Assisti o vídeo.

E ele me fez lembrar que o universo vibra o que a gente clama.

Re-clamo tanto do que me fere que parece que é só isso que aparece mesmo.

Mas algo só me fere porque eu estou viva, com relativo grau de saúde, tenho um convênio que me ampara, com salário suficiente para pagar minhas contas, minha comida, minha Netflix e minha internet.

São essas coisas que me feriram até hoje que me levaram à terapia. E sou grata pela terapia. Sou uma pessoa melhor hoje (também) por causa dela.

A gente é ensinado a ver o lado ruim de tudo. Se você não foi, sorte sua. Eu fui. Ver o lado bom, ou pelo menos o lado menos desgraçado é um exercício muito grande...

Já tinha visto esse vídeo antes, mas ele era cheio de "frases prontas" e, por isso, não me liguei.

Mas hoje eu me liguei. Talvez porque hoje eu já soubesse...

Ribeirão Preto, 09 de novembro de 2019.


8 de nov. de 2019

IMPACTO PROFUNDO

Meu caro, minha cara.

Sabe aquele filme "Impacto Profundo", com o Morgan Freeman? Uma das cenas finais mostra o meteoro atingindo a terra e seus efeitos no mundo todo. Uma das pessoas que participou da descoberta do meteoro era uma moça que resolveu ficar com  pai no momento do impacto.

Estavam os dois na praia, conformados com o que iria acontecer. Estavam na praia quando a grande onda provocada pelo impacto veio.

Nem precisa ser muito inteligente pra saber o que aconteceu com eles quando essa super onda chegou.

(...)

Eu acho que já deixei claro aqui a minha predileção e a minha saudades do mar. Sinto falta dele todos os dias, e deixei isso embotado por décadas.

(...)

Não acho que seja coincidência ter elegido o Kraken como meu ânimus.

(...)

Cada vez fica mais nítido que acolhimento, aniquilação e proteção têm, pra mim, a mesma origem.

Ribeirão Preto, 08 de novembro de 2019.


6 de nov. de 2019

NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS

Meu caro, minha cara.

Não é à toa que eu faço terapia com alguém da bioenergética.

Não é à toa que eu só sinto meu corpo quando sinto dor.

Não é à toa que eu só sinto o peso do mundo quando sinto meu corpo pesado.

Não é à toa que eu digo a anos que eu tenho que "dar conta" de muita coisa: "dar conta" das responsabildiades. "Dar conta" dos meus atos. "Dar conta" das minhas escolhas.

Contas, contas e mais contas, pagas de um fundo vazio de dinheiro, tempo e amor.

(...)

Ribeirão Preto, 06 de novembro de 2019.


3 de nov. de 2019

JIPINHO VERMELHO

Meu caro, minha cara.

Quando era criança, eu estudava de manhã e ia no Sesc à tarde para as aulas de dança.

Adorava dançar.

Ainda mais sabendo que, ao final do ano, iríamos nos apresentar no teatro do Sesc. As apresentações sempre eram relacionadas a uma história.

Uma tarde, enquanto minha avó me levava ao Sesc à pé, vimos um homem batendo em uma mulher no meio da calçada. Faltava só mais aquela quadra para chegarmos ao Sesc, uma quadra imensa, que dava as costas para um terreno do INSS e de frente a vários campos de futebol de várzea. Além dos campos, os predinhos do BNH.

O cara batia na mulher e minha vó me puxou pelo braço para andarmos mais rápido.

Foi quando apareceu o playboyzinho no jipinho vermelho: ele saiu do carro empunhando uma pistola preta, automática, e mandou o cara parar de bater na mulher naquela hora.

Ele tinha cabelo loiro, um pouco comprido, magrelo, camiseta branca, bermuda jeans e tênis.

E óculos escuros.

Eu queria ver o que iria dar tudo aquilo.

Minha avó quase me arrastou pelo chão, aterrorizada com a cena.

Nunca mais vi coisa semelhante.

(...)

Nosso corpo conta muitas histórias.

Pernas, braços, punhos, dedos, ombros... Seja para dançar ou bater em alguém, nosso corpo conta muitas histórias...

Ribeirão Preto, 03 de novembro de 2019.




27 de out. de 2019

TELECATCH

Meu caro, minha cara.

Quando era criança, eu assistia o "Viva a Noite" até o final porque sabia que o programa seguinte era o "Luta Livre na TV".

Eu achava muito engraçado as performances dos lutadores, pois dava pra ver que era de mentirinha.

Mesmo sabendo que tudo aquilo era ensaiado e combinado.

As lutas que eu mais gostava eram aquelas em que duplas se revezavam no ringue. Duas pessoas lutavam e seus parceiros ficavam do lado de fora.

Quando um deles estava levando um cacete do outro, bastava estender a mão até o parceiro e este o puxava para fora do ringue, pulava para dentro e a briga recomeçava.

Não importava quem desse o golpe final. Era trabalho de equipe.

Deve ser bom ter isso. Bater na mão de alguém e ela entrar dizendo "deixa que eu assumo a partir daqui".

Ribeirão Preto, 27 de outubro de 2019.


25 de out. de 2019

INVENTÁRIO DE MIUDEZAS

Meu caro, minha cara.

Caixinha de pedra sabão pintada de vermelho: comprei em Paraty. Queria algo que me lembrasse da praia, mas não de forma explícita. Adoro sua simplicidade.

Onibusinho colorido: a Nani que me deu. Ela foi pra Colômbia, se lembrou de mim e trouxe. Ela é muito fofa...

Totem de obsidiana: quem me deu foi o Olavo. Bom menino, mas fala mais que o homem da cobra (rsrsrs). Ele é triatleta (pelo menos, quando ele foi meu estagiário, era). Foi representar o Brasil numa competição e me trouxe. Se colocar no sol, a obsidiana fica dourada.

Buda: trouxe de Foz do Iguaçu. Comprei no templo budista quando minha mãe e eu fomos lá. Adoro a cidade. Já fui duas vezes. Espero ir a terceira.

Coruja de vidro: artesanato de 1,99, não é muito bonitinha não. Mas quem me deu foi a Termutes. Trabalhamos juntas, já. Pensa numa pessoa doce! Obstinada e doce. Um exemplo de gente boa...

Gatinho dando tchau: a Tati Beneduzzi me deu. Tinha outro gatinho fazendo par, mas um dia o Juvenal se assustou com um grão de pólen, saiu pulando pela casa e quebrou o amiguinho. O Dudu viu e, ao invés de colar os pedaços (ou deixar para eu colar), ele jogou fora... :|

Sagrada Família: comprei em um natal qualquer. Mesmo não me considerando católica, ela me lembra amor. Preciso disso.

Cachepô de vidro: ganhei no meu chá de cozinha, da Kelly. Nos encontramos menos do que gostaria. Puta profissional de RH. Baita pessoa legal.

Aquário de conchas: são as conchas que peguei em Paraty. Graças a elas eu tive insolação. Mas foi uma viagem linda. O Juvenal quebrou um pedaço do aquário no mesmo ataque de susto por causa do grau de pólen.

Cerejeira de led: quem me deu foi a Nelize. Adoro essa cerejeira, mas não é sempre que eu a ligo. A Ne e eu não conversamos mais. Continuo amando minha amiga, mas eu acho que ela está num caminho que precisa trilhar sozinha. Isso é triste...

Quadro das azaléias: minha mãe quem pintou. Ela adora azaléias. Não acho minha mãe uma pintora excepcional, mas esse quadro é muito bonito (pelo menos para mim ele é). Eu acho isso porque eu não percebo que ela quis controlar todas as pinceladas. Querer controlar tudo é doença.

Orquídea: ganhei do Dudu do dia dos namorados. As flores são lindas, mas já secaram e caíram. Agora, só restam folhas. Sei que estou cuidando bem dela porque há uma folha nova saindo. As vezes um passo à frente não tem cara de um passo à frente...

Ribeirão Preto, 25 de outubro de 2019


24 de out. de 2019

NINGUÉM MERECE

Meu caro, minha cara.

Há dias que são de fúria. E não precisam ser dias em que você recorre à violência.

Por que digo isso?

Porque hoje, agora à pouco, percebi que boa parte do meu ano tive dores crônicas: pescoço, cabeça e costas.

Meses sentindo dor, para ser exata.

E se tudo der errado, até o final do ano vou somar o joelho novamente à conta.

Sentir dor é um exercício de humanidade: amacia e endurece seu coração de um jeito que nenhuma outra experiência faz.

Mas é um puta exercício de merda! Só quem sente dor e é consciente dela (porque uma coisa é sentir dor, outra coisa é entender porque ela está ali), sabe que ninguém merece isso. Nem aquela pessoa que você detesta/não presta merece.

Só quem sente sabe o quanto a dor é limitante. Limita movimentos, estratégias, ações e desejos.

Te deixa embotado.

Há dias de fúria...

Ribeirão Preto, 24 de outubro de 2019


16 de out. de 2019

DIVINO MARAVILHOSO

Meu caro, minha cara.

As festas juninas no Sesc sempre foram perfeitas. Minha vó sempre trabalhava na barraquinha de doces, o que garantia passe livre ao estoque da barraquinha para meu irmão e eu.

Uma das coisas que eu mais gostava era da fogueira. Ela era alta, quase do tamanho de uma pessoa, e ardia por dias a fio.

De noite, ela era um espetáculo à parte. Gostava quando ela soltava suas fagulhas, fuligem em brasa pelo vento.

Corria atrás delas imaginando vagalumes de fogo.

Minha vó me viu fazendo isso com outras crianças e correu em minha direção. "Para com isso menina! Para de me envergonhar!"

Me arrastou pelo braço até a mesa onde meus pais estavam.

"Para de me envergonhar"...

(...)

De onde foi que ela tirou que felicidade pode trazer vergonha?*

Ribeirão Preto, 16 de outubro de 2019

*PS: foi uma pergunta retórica. Eu acredito que sei o porquê...


14 de out. de 2019

HÁ VAGAS

Meu caro, minha cara.

Sempre pensei que fosse feita para ser sozinha.

Mal sabia eu que eu nasci para ter família.

Mas família é algo complicado: se você tem a sorte de nascer naquela em que deveria, beleza.

Se não...

A minha família não tem títulos. Tem amor.

Só que não é aquele que eu aprendi lá atrás e que já contei aqui uma vez.

É do tipo de amor de verdade.

Daquele tipo em que se gera calor.

Gostoso como passar manteiga fresca no pão doce recém saído do forno, para depois abocanhar e deixar o rosto sujo da gordura.

Ou como estender os braços e saber que eles serão recheados de abraços, beijos, cafunés, apelidinhos e brigadeiros de colher.

Daquele tipo em que um está pelo outro, sem pedir nada em troca.

Ou melhor: pedir, sim, coisas em troca.

Pedir abraços, beijos, fotos, apelidos, orgasmos, memórias, colinhos, iniciativa, "deixa comigo que eu resolvo", loucuras, piadas e afins.

Minha família ainda é pequena; há ainda muitas vagas.

Mas só se candidate se você realmente for dar conta de querer começar isso comigo de fato...

Ribeirão Preto, 14 de outubro de 2019.


AS DUNAS

Meu caro, minha cara.

Não dá para segurar a areia. Ela escapa entre seus dedos.

Por isso que eu acredito que ela é a melhor representação do tempo, pois ambos não podem ser represados.

Mas alguém pode me perguntar: "E a ampulheta?".

Eu responderia: "O que ela guarda? Areia ou tempo?".

Ribeirão Preto, 14 de outubro de 2019


9 de out. de 2019

QUAL É A SUA DOR?

Meu caro, minha cara.

É sabido (pelo menos eu acho) que o animal característico dos cancerianos é o caranguejo.

Quem estampou o caranguejo no céu foi Hércules.

Mas isso é outra história.

Como todo crustáceo, o caranguejo precisa quebrar a sua carapaça para crescer.

O ponto de quebra sempre é em suas costas.

Fico pensando se, quando eles crescem e as carapaças quebram, se eles sentem dor em suas costinhas...

...pois eu estou sentindo muita dor na minha...

Ribeirão Preto, 9 de outubro de 2019


8 de out. de 2019

AQUELES OLHOS VERDES...

Meu caro, minha cara.

Meu primeiro beijo foi aos 10 anos de idade.

Mas digo a todos que foi aos 14.

Porque, aos 14, eu beijei um rapaz.

Contudo, aos 10, beijei minha colega de classe.

Foi no quarto dela, enquanto fazíamos lição de casa. Ela tinha olhos verdes, franjinha e muitas sardas sobre o nariz.

Ela que tomou a iniciativa.

Eu deixei.

Não lembro do nome dela.

Mas aqueles olhos...

Ribeirão Preto, 8 de outubro de 2019



6 de out. de 2019

4,8%

Meu caro, minha cara.

Hoje é domingo. Dia de ir pra cozinha e fazer almoço. Já pus o frango no forno, acompanhado do clássico combo cebola-alho-tomate-batata-cenoura.

Sempre detestei frango assado.

Até que eu passei a eu mesma fazer.

Durante tudo isso, bebo cerveja.

Ah... Adoro cerveja...

...e adoro ficar bêbada...

...muito bêbada...

Ribeirão Preto, 6 de outubro de 2019


5 de out. de 2019

LEVE-ME, ORFEU...

Meu caro, minha cara.

Adoro mitologia, lendas e contos de fadas.

Não porque eles sejam apenas fantasia.

Mas porque são meios de falar coisas que, de outra forma, não poderiam ser ditas.

Hoje, lembrei de Orfeu.

Participante ativo dos Argonautas, Orfeu possuía uma harpa mágica que, quando tocada, acalmava as feras e atraia os pássaros.

Salvou muitos companheiros com a doçura de suas canções.

Um dia, conheceu a ninfa Eurídice e se apaixonou. E ela por ele.

Se casaram e eram felizes, mas outro homem desejou Eurídice e a quis para si. Eurídice fugiu, mas na fuga foi atacada por uma cobra e morreu.

Foi levada a Hades...

Orfeu se desesperou. A amava. A queria. Precisava resgatá-la.

Conseguiu convencer Caronte. Conseguiu adormecer Cérbero. Fez um acordo com o Deus dos Mortos: Eurídice poderia voltar aos vivos, desde que eles escalassem para fora de lá juntos, ele na frente, ela atrás. Mas ele não poderia voltar seu rosto para ela até que ela estivesse embebida pela luz do sol.

Voltaram. Ele com o coração cheio de esperança. Ela atrás.

Ele olhando a sombra dela. Ela atrás.

Ele sonhando com o futuro juntos. Ela atrás.

Porém Orfeu era apenas um homem... E teve medo de ter sido enganado...

Voltou seu rosto para trás, apenas para ver, por um momento, Eurídice se transformando em fantasma, arrastada de volta ao inferno por Perséfone, estendendo seus braços de fumaça para o marido, chamando por seu nome com sua voz imaterial...

Foi-se... O acordo fora desfeito, maculado por sua falta de fé.

(...)

Somos feitos de sangue, ossos e caos...

Ribeirão Preto, 5 de outubro de 2019.


2 de out. de 2019

FUNÇÃO REPEAT / Ramones - Do You Remember Rock 'n' Roll Radio?

Meu caro, minha cara.

Ah... Como a tecnologia é uma benção quando bem usada...

Quando digo isso, lembro logo dos aplicativos de música. Meu marido e eu temos uma conta em conjunto e conseguimos, com isso, conhecer, resgatar e ouvir (quantas vezes quiser) tantas músicas e estilos musicais quanto possível.

(só sinto que meu gato tenha comido meu fone de ouvido e eu ainda não tenha comprado um a altura - daí eu viraria uma verdadeira autista)

Minha última lista é dedicada ao rock e, atualmente, voltei a me encantar com Ramones. Daí, como todo encantamento, escolhi uma música para virar mantra.

Escolhi "Needles and Pins".

A história de um rapaz que viu a ex e prefere sofrer a ter que dar o braço a torcer e ir atrás dela.

(mas poderia ser a história de uma moça que viu o ex e prefere sofrer a ter que se expor e levar um fora dele)

Três semanas depois resolvi mudar o mantra. Agora vou de "Do You Remember Rock 'n' Roll Radio?"

Já que é para deixar a função repeat ativa, que pelo menos seja algo que me lembre que a gente precisa ter variedade nessa vida...

Ribeirão Preto, 02 de outubro de 2019.


"Porque ultimamente tudo soa a mesma coisa pra mim"

30 de set. de 2019

LUA EM FORMA DE FOICE...

Meu caro, minha cara.

Saio do trabalho e olho para o céu. Já está escuro e a lua se parece com aquela da bandeira da Turquia. Vou para minha casa.

Faço o retorno por debaixo do viaduto e vejo a casa. Ela é feita de terra, passarela, viaduto, tapume e cobertor. Outro dia, os moradores varriam a terra, enquanto uma fogueira improvisada esquentava o almoço.

Aquela casa também tem quartos. Pelo que vi, são dois, feitos de compensado e cobertor. Durante o dia dá pra ver os colchões feitos de papelão. À noite não dá pra ver nada, por a porta é fechada com a coberta presa como varal.

Durante dia e noite, muitas pessoas passam por aquela casa. Passam à pé, bicicleta e moto para ir e vir dos empregos.

Acho que os moradores também têm seus empregos, mas diferentes...

Chego em casa e reclamo coisas do trabalho. Tomo banho e sento no sofá. Daqui eu vejo a lua da janela do meu quarto.

Do quarto daquela casa de viaduto não há janelas para a lua...

Ribeirão Preto, 30 de setembro de 2019





22 de set. de 2019

A CAIXA

Meu caro, minha cara.

Guardo lembranças de lugares e pessoas. Quando alguém viaja, já saio logo pedindo um imã de geladeira de presente (rsrsrs). Quando viajo, trato de arrumar uma lembrança do local. Quando alguém chega de viagem e me traz um mimo, fico muito feliz.

De todas as coisas que comprei e ganhei em todos esses anos, a mais intrigante é uma caixinha de madeira que ganhei do meu primeiro namorado.

Era meu primeiro ano de faculdade e eu arrumei como namorado O CARA. Todas babavam nele. Ninguém sabia qual era a dele. Ele era aquele galã enigmático, bem ao estilo "Juventude Transviada".

E ele era meu.

Completamente apaixonada, amava tudo nele. Quando ele foi para a cidade dele e me trouxe a caixinha de madeira de presente, fiquei super feliz. Ele disse "achei a sua cara". E era!

O mundo era perfeito.

Até o dia 17 de novembro de 2000.

Ou melhor: a noite de 17 de novembro de 2000.

(Esse é o momento em que eu travo e me arrependo de ter começado esse assunto. Mas tudo que tem um começo merece ter seu desfecho)

Hoje, com a distância do tempo, eu posso eleger esse dia como o pior da minha vida. O mais humilhante. O mais violento. O mais degradante.

Horror travestido de obrigações.

Que não acabaram naquele dia.

Mas, um dia, acabaram.

Queimei fotos, chorei, fiz muita besteira. Muita.

Muita.

Muita mesmo.

Foi isso que me empurrou para a terapia. Estou nela até hoje.

Ainda bem.

Hoje eu posso dizer que lido melhor com os eventos que se passaram comigo. Não só o desse dia, mas também dele.

De todas as coisas sobre essa história que deixei para traz ou destruí, a caixa de madeira foi a única que não tive coragem de mexer. Ela está na minha sala hoje, como um simples objeto de decoração aos olhos de muitos.

Para os meus, é a lembrança de algo que foi bom. Mesmo que, depois, tenha se transformado em uma cicatriz.

Ribeirão Preto, 22 de setembro de 2019.


Iggy Pop - Candy


"Você me amou sem interesse"

19 de set. de 2019

MESMO TRAJETO

Meu caro, minha cara.

Setembro é época de céu opaco. Só quem vive aqui sabe o que é.

Acordo e fico na cama, pois não sou do tipo de pessoa que acorda e levanta num salto. Decido sair dela quando o Juvenal chegou do lado de fora, arranhando a porta do quarto, querendo entrar. Os miadinhos dele cessam e vou até ele. Magro, já que não tem vontade de comer devido ao calor intenso, ele só bebe água. Aos montes.

Abro a porta, ele olha pra mim e se apoia nas patinhas traseiras pra se projetar nos meus braços: quer colo, o danado. Pego ele que nem criança e fico andando pela casa assim, com ele no meu colo, feito o filho humano que acho que nunca vou ter.

É muito gostoso sentir ele ronronar...

Coloco ele no chão e dou sequência ao dia: arrumo a cama, bebo água, tomo banho, passo protetor e me visto. Por último de tudo vem o perfume. Adoro perfume...

Saio, ligo o carro, ligo o ar condicionado e resolvo não colocar os óculos escuros. Ligo o rádio e escuto uma música da década de 90. No meio do caminho, paro o carro no meio da rua: galinhas d'angola fugiram de algum quintal e estão zanzando pelo trânsito do bairro. Acho graça (elas são engraçadinhas). O cara do pálio vermelho quase que não para o carro para elas. "Para! Filho da Puta!", é o que eu grito de dentro do meu carro. O pessoal que está fazendo caminhada escuta e acha graça.

Aliás, por que as galinhas d'angola atravessaram a rua?

Para chegar ao outro lado...

Com as galinhas em segurança na calçada, sigo em frente. E, em frente, há cavalos pastando o pasto seco. Passando por eles também está o senhor gordinho que corre todos os dias. Ele sempre está suado e com cara de quem vai morrer de infarto, mas todos os dias ele corre. Eu? Esperando a dor nas costas passar para voltar a caminhar.

Sigo em frente, faço curvas, desvio de buracos. No meio do caminho para o trabalho, vejo nosso futuro.

Todos os dias, na ida e na volta. Ao lado dele, estão seus dois velórios. São raros os dias em que não há ninguém sendo velado neles.

Sigo em frente. Seguimos em frente.

Ribeirão Preto, 19 de setembro de 2019.


17 de set. de 2019

NOS OLHOS DOS OUTROS...

Meu caro, minha cara.

Já dizia o ditado: "Pimenta nos olhos dos outros é refresco".

Tudo porque minimizamos a experiência do outro, principalmente quando é uma experiência negativa.

"Não é tão ruim assim..."
"Isso não é dor, eu manha!"
"Não consegue? Precisa se esforçar mais."
"Fez porque quis. Agora aguenta!"

Esse é um prazer muito sádico.

Por que digo tudo isso? Porque quero empurrar a filha da puta da minha vizinha da escada, em resposta à pimenta que ela colocou nos meus olhos.

A causa disso tudo? Nem vale a pena contar. Seria um rosário de reclamações sem sentido, desfiando o tempo e a paciência de quem lê.

Quem levantou a bandeira da paz foi meu marido. Levantou para mim, porque pra'quela vaca, eu quero mesmo que um galão de ácido caia na cara dela.

Mas meu marido pede paciê... Minto: ele pede inércia. "Pelo menos por hoje, não faça nada. Só por hoje".

Como no mantra dos Alcoólicos Anônimos.

Não fiz nada e não vou fazer.

O que fiz foi bem o oposto: lembrei de um vídeo que recebi de um pastor falando sobre o amor ao próximo. A grande incapacidade do ser humano em interpretar o que é esse "amar ao próximo" que Jesus tanto falava.

"Não é gostar do próximo. É lembrar que esse 'próximo' que  você odeia também é um ser humano, que tem uma história, dilemas, defeitos, qualidades, características, limitações e talentos. É lembrar que meu ódio não dá direito a tirar daquela pessoa a sua humanidade".

(Não foi exatamente isso que ele falou, mas o sentido é esse aí)

Resumo do texto? Eu luto por poder amar ao próximo, mas eu odeio amar ao próximo.

Ribeirão Preto, 17 de setembro de 2019

14 de set. de 2019

PERFIL DEMOGRÁFICO

Meu caro, minha cara.

Quando estava fazendo minha inscrição para os vestibulares, eu precisei preencher algumas fichas.

(Não sei se agora o preenchimento é online, mas na minha época era em papel)

Foi nessa época que eu decidi pela Psicologia.

Hoje eu digo que foi um erro enorme do ponto de vista de carreira. Mas que, com a história que eu tenho e com as coisas que eu percebo atualmente, foi a decisão mais sensata que eu poderia tomar naquela época.

(Mas para minha carreira foi uma bosta)

Preenchi as fichas no próprio cursinho e entreguei na secretaria. Além das informações de contato e do curso de interesse, havia uma parte do questionário dedicada ao perfil demográfico do inscrito.

Entre outras perguntas havia aquela sobre religião. "Qual a sua religião?", seguido de vários quadradinhos com opções.

Eu marquei "nenhuma".

Essa foi a primeira vez que eu admiti isso.

Nascida e criada dentro de uma família católica, filha de uma mãe ultra católica que me consagrou a uma santa criança e virgem, eu fui batizada e crismada, convidada para ser catequista, participante de grupos de jovens, com direito a retiros, corais e os cambáu.

Mas algo estava errado.

Quando disse a meus pais que eu já tinha feito a inscrição no vestibular, sem a "ajuda" (na realidade, a tutela) deles, quiseram saber tudo o que eu respondi. Quando disse que na parte da "religião" eu coloque "nenhuma", percebi que Satã baixou lá em casa, porque eu nunca vi meus pais tão bravos.

(Mentira. Vi sim. Milhares de vezes. Mas foi jeito de falar)

Naquela época eu ainda dava respostas francas e sinceras a tudo que perguntavam. Mesmo sabendo que iria me foder com isso.

(Agradeço ao cosmos por não estar mais naquela época)

Entrei na faculdade, estudei religiões, estudei um monte de coisas, pensei que fosse atéia, mudei de ideia e voltei para a missa e desisti de tudo quando, numa missa de ano novo, comecei a chorar ao passar pelas portas da igreja.

Um choro de desespero, asco, medo, nojo, raiva.

Aquilo não era para mim.

Meus pais haviam me obrigado a ir com eles nessa ocasião, mas viram a minha reação, me viram segurando tudo aquilo dentro de mim... Acho que minha revolta era tão nítida que eles se espantaram. Daquele dia em diante nunca mais me obrigaram a ir numa missa. Sempre me perguntavam antes se eu queria ir ou não.

Depois de alguns anos, nem perguntar eles perguntam mais. Já sabem que a resposta é "não".

Três letrinhas abençoadas, que me ajudam a criar limites e me dão espaço para pensar (por enquanto) e fazer (daqui a pouco) o que eu realmente quero da minha vida.

Quem diria que um simples "x" desencadearia tanta coisa?

Ribeirão Preto, 14 de setembro de 2019.


6 de set. de 2019

MAIS DO MESMO

Meu caro, minha cara.

Andávamos aos pares nos domingos de manhã ao sol. Não me lembro se, antes, íamos à missa. Acho que não. Ir à missa sempre foi uma tortura. Mas andar pelo calçadão não era.

O sol traz os turistas e deles tínhamos que nos desviar. Sorte que eles queriam areia, ao invés de chão de cimento. Andávamos e conversávamos, brincando que as antenas parabólicas em cima dos prédios (novidade na época) eram redes montadas para pescar peixes voadores.

Olhávamos as pessoas, os carros, as cenas. Absorvia as histórias que via e inventava.

Os domingos de sol e caminhada eram os melhores...

(...)

Não passava protetor solar. Achava ruim minha mãe passar isso em mim e ter que esperar aquela meleca secar. Queria brincar, brincar e brincar. Nadar até onde o pé não alcançava o chão e sentir medo por isso. Nunca mais sair da água, mas ter que sair dela para voltar à realidade. Uma realidade que  cobrava o preço por uma pele queimada de sol dentro de um carro quente, sem ar condicionado, numa fila de carros esperando sua vez para entrar na balsa e retornar para casa.

Chorava com a pele ardendo pelo sal e sol e teimosia. Sei que enchia o saco de todos com meu choro. Mas... Fazer o que? Era só uma criança...

(...)

Mais de duas décadas se passaram até eu voltar a molhar meus pés do jeito certo. Andava sem rumo e catava conchas brancas na areia branca. Até lembrei de passar o protetor antes e colocar um boné, mas entrava na água tantas vezes para limpar a areia das conchas que catava. Com isso, também lavava o corpo e esquecia do protetor. Peguei uma insolação que só os banhos de cachoeira fizeram sarar. Andava sozinha pelas ruas, sabendo que estava num lugar seguro. Bebia cachaça, cerveja e caipirinha. Não tinha relógio e não tinha roteiro. Passava os dias ouvindo "Because". Tirei as primeiras fotos pelas quais me orgulhei.

(...)

Namorava nessa época e foi um final de ano quase horrível. O que salvou foi a tempestade, vinda do mar, lá longe, aos poucos alcançando a costa. Via as pessoas fugindo, o vento varrendo cabelos, roupas, rostos e chinelos. Via os raios, ouvia os trovões. Sorria.

No dia seguinte, sol. Andava pela orla e via o resultado: muitas conchas quebradas, muitos siris mortos, mariscos soltos de suas pedras. Um mosaico lindo vindo da fúria.

Não havia fúria alí. Havia apenas natureza.

(...)

Estava frio. O tempo todo, frio. E vento. E pescadores com tarrafas a poucos metros da areia. Conversavam com seu sotaque apressado, enquanto algumas garças e gaivotas esperavam por alguma sobra. Não sei o que pescavam. Eu só queria andar.

No dia seguinte, vento e pés descalços. Sem mergulhos dessa vez. Apenas matando as saudades. Apenas me sentindo em casa. Apenas querendo caminhar pela orla. Esperando sair dali e voltar para uma casa que fosse próxima de lá. De lá ou de qualquer outro lugar igual.

Ribeirão Preto, 06 de setembro de 2019.


31 de ago. de 2019

A UMA MORDIDA DE DISTÂNCIA

Meu caro, minha cara,

Morder.

Esse foi o hexagrama que apareceu na última vez que joguei o I Ching.

I Ching... Logo eu, tão racional, tão afeita à ordem... Pois é: jogo de vez em quando.

Funciona assim: você pergunta, o I Ching responde, você quebra a cabeça para interpretar. E precisa de muito cuidado para interpretar da maneira correta, não a que reforça o que você quer ouvir.

É um oráculo sem pitonisa, um convite ao desastre...

Por isso que jogo pouco: não se pode banalizar um oráculo.

Pois bem: não vou dizer a pergunta, mas sim a resposta.

"Não progredirei até tomar uma decisão".

Só que não sei que decisão é essa. Ainda estou como um míope que não enxerga nada. Tudo está embaçado, não vejo as opções que tenho!

Ver o mar (meu carinho, mãe e amor) só serviu para me mostrar o quanto ainda estou cega e preciso de um guia.

Meu kraken ainda não pode cumprir esse papel. Até o momento ele só me deu garras, mas ainda me faltam os olhos e os dentes.

Não quero tomar decisões no escuro...

Ribeirão Preto, 31 de agosto de 2019.

Janes Joplin - Kosmic Blues


"Não espere alguma resposta, querido
Pois eu sei que elas não vêm com a idade"

20 de ago. de 2019

VENTO SUL

Meu caro, minha cara,

"Olá, minha mãe. Tudo bem? Estou aqui".

Essas foram as minhas primeiras palavras quando botei meus pés na água e os afundei um pouco na areia. Água gelada, indo e vindo contra meus tornozelos.

Quanta saudade estava guardada nesse meu peito e eu nem sabia o quanto...

(...)

Nasci numa ilha em 1981 e nunca prestei atenção nisso. Ao contrário de muitos e muitas, não gostava de ficar ao sol rolando como um bife empanado, me bronzeando. Sempre fui branquinha, sempre gostei de ser branquinha.

Mas o mar estava ali e ele não serve apenas para nadar. Gostava de olhar para ele e das caminhadas que minha família e eu fazíamos no calçadão nessa época. Nessa época, minha família era bem maior, pois haviam tios, tias, primos e primas, além de vó, pai, mãe e irmão.

Há também um grande benefício de se morar perto do mar: todo réveillon pulávamos sete ondas e jogávamos uma rosa branca para Iemanjá. Essa mãe sempre recebia com carinho tudo o que lhe dava.

Por conta de várias decisões que não tomei, fomos embora para o interior. No começo, gostei, pois pensei que teríamos um novo começo em um novo lugar. Ao sair da ilha, pensava que deixaria para trás a alergia e o inferno dos invasores (vulgo turistas). Deixaria a escola do meu irmão e todas as pessoas mesquinhas que encontrei lá.

Poderia seguir.

E segui.

Não o caminho que eu queria, mas o caminho que deu.

Mudei de cidade mais quatro vezes. Na atual, estou há 11 anos. Nela eu finquei minha carreira e mudei meu estado civil. Encontrei todo tipo de gente, como é de se esperar em cada local em que se "escolhe" para si.

Finalmente de férias, viemos para o Sul, para outra ilha. Indo na contramão do clima, viemos para cá no inverno e fomos apresentados ao Vento Sul. Ele paralisa meu rosto e chicoteia meus cabelos até ficarem embaraçados. Ele me abraça e me força a andar com mais firmeza. Meu marido não gosta dele. Eu o amei logo na primeira lufada.

Apenas um dia incrível de sol bastou para irmos na praia. Não para ficar empanando na areia, mas para matar as saudades. "Oi mãe, senti sua falta", eu dizia. Repito isso com lágrimas nos olhos, com ela na minha frente em plena maré alta, enquanto estou sentada na orla escrevendo isso.

Sinto falta da água, do sal, da areia, do vento.

Sinto saudades dessa casa sem raízes.

Estou em uma terra onde falta tudo isso...

Florianópolis, 20 de agosto de 2019.



11 de ago. de 2019

EM TRAPOS / Legião Urbana - Baader-Meinhof Blues

Meu caro, minha cara,

Tempos atrás, quando minha vó morava no interior (mas aquele interior com força mesmo, não aquele pasteurizado de novela), íamos para a casa dela mas férias. Íamos minha mãe, meu irmão e eu. Raramente meu pai ia pois estava trabalhando na refinaria.

Foi numa dessas férias que meu irmão e eu aprendemos a fazer cola misturando água com farinha de trigo e a empinar pipas (quer dizer: ele aprendeu a empinar, eu ficava só olhando e dando pitaco).

Na casa da frente da minha vó havia uma família muito pobre. Lembro que o muro era apenas um ajuntamento de bambus entrelaçados com arame e o chão era de terra batida. Mas haviam crianças lá, então nada mais importava.

Lembro que aquela casa cheia de crianças só tinha uma menina, um pouco mais velha que eu, acho. O resto, tudo menino. Mas brincadeira de criança não tem gênero, não é verdade?

Exceto uma vez.

Brincávamos de polícia e bandido e, na brincadeira, a menina seria a vítima. Os irmãos dela seriam os bandidos e a vestiram (por cima das roupas normais) com alguns trapos, roupas muito velhas que eram usadas pra limpeza.

Então, começou.

Os "bandidos" (os irmãos da menina) começaram a "bater" nela e a rasgar suas "roupas". Ela gritava para encarnar na personagem, mas acho que era só por isso mesmo. Pensei assim por causa dos olhos dela, fascinados com o que acontecia. A violência com o que incorporavam seus papéis me deixou perplexa. Mas não assustada. Com seis anos de idade, vim saber antes de ouvir Legião que "a violência é tão fascinante...".

Pouco depois minha vó se mudou para outra cidade, um pouco maior, mas ainda no interior. Nem me lembrava mais daquela família e daquela cena.

Até que minha vó morreu.

Quando chegamos na cidadezinha em que ela morava antes, onde seria o enterro, a cidade inteira estava lá. Eu já havia me formado na faculdade e estava sem emprego ainda. Mas, como eu era a primeira neta dela a ter diploma, isso era algo especial (pelo menos, para minha mãe).

Entre todas as pessoas que nos cumprimentavam e nos davam condolências, ouve uma senhora que chamou minha atenção. Ela estava surpresa por eu estar "tão grande" e minha mãe logo foi falando que eu "já tinha até diploma". Atrás dela havia uma moça raquítica com uma bebê no colo. Olhei para a moça e reconheci na hora a menina que teve as "roupas" rasgadas naquela "brincadeira".

A mãe dela dizia entusiasmada "vocês brincavam quando era criança! Por que não conversam um pouco?".

Sem jeito, sentamos num dos banco e procurei ser simpática. A moça raquítica mal conseguia formar uma frase. A bebezinha (com pouco mais de um ano) estava com fome e ela ignorava as reclamações da filha. A impressão que me passou é que ela não sabia o que fazer com aquilo. Peguei uma barra de cereal com chocolate e dei para a menininha.

Perguntei como estava a vida, se ela estava bem, o que tinha feito. Ela só sorria e balançava a cabeça. Sem conseguir formar uma frase. A mãe dela logo veio ao socorro, dizendo que o pai da criança estava "viajando".

A gente sabia que ele não estava viajando porra nenhuma.

Onde não há informação, há imaginação: enquanto a moça quieta apenas sorria e acenava com a cabeça, imaginei o que poderia ter acontecido.

Imaginei uma vida de submissão aprendida. De uma violência aprendida. De uma resignação aprendida. De um sem-futuro aprendido. Aonde era mais importante saber fazer feijão do que conjugar um verbo. Saber lavar roupa no tanque do que uma adição.

Imaginei uma vida onde um único e possível alívio seria um orgasmo inconsequente e uma filha como consequência. Uma filha que tinha fome e que, muito provavelmente, continuaria o ciclo. Uma filha sem pai presente, que "pode" fugir daquilo sem ser crucificado.

Na época eu pensei o quanto eu tive sorte de não ter tido a mesma criação que ela.

Mas, depois de muito tempo, eu percebi porque eu não fiquei assustada com aquela cena da infância.

A violência se torna fascinante quando ela não é apresentada a você como tal.

Quando ela é travestida de Amor, a única coisa que você deseja é espalhar Amor pelo mundo, mesmo que acabe em trapos.

Mococa, 11 de agosto de 2019.


"...e nossas vidas são tão normais..."

27 de jul. de 2019

ANÉIS E DEDOS

Meu caro, minha cara,

Sempre se escuta que, quando algo de ruim acontece, mas não uma catástrofe, é costume dizer que "vão-se os anéis, ficam-se os dedos".

Nunca ouvi dizer o que acontece quando os anéis chegam...

Desde que consegui nomear esse serzinho que vive dentro de mim, eu converso bastante com ele.

(Não... Não estou grávida... Estou falando do meu Kraken...)

Pois bem: desde que eu o identifiquei e batizei, temos conversado bastante.

Embora ele não queira que muitas coisas que estão acontecendo de fato aconteçam, ele tem me ajudado a segurar firme e seguir em frente.

Ele, inclusive, até tem me ajudado a descobrir maneiras mais... inteligentes (eu diria) de dar conta da minha ansiedade (entre outras coisas).

Um desses jeitos foi o de voltar a usar anéis nos dedos. Mas não bijuterias. Jóias.

Nunca fui de usar nada. Creio que, em parte, por sempre ouvir minha mãe dizer que eu perderia tudo, já que (segundo ela) eu era uma cabeça de bagre que não tinha cuidado com as coisas.

(Depois me perguntam por que eu faço cara de cú para muitas coisas...)

(...momento bitch face...)

(...vamos voltar ao assunto...)

Bom. Na adolescência, eu decidi que eu iria me expressar de alguma forma. Fui numa hippie na pracinha perto da rodoviária e comprei brincos e anéis baratos. Usei os brincos até quase perder as orelhas, de tanta alergia e inflamação que deu.

(...outra coisa que a minha mãe dizia: brincos fajutos causam inflamação - eu só podia usar ouro...)

(...mas ela nunca deixava eu usar nada, porque eu era a cabeça-de-bagre-que-não-tinha-cuidado-com-as-coisas...)

(...mais um momento bitch face...)

Usei tudo que eu tinha vontade até que a minha força de vontade vencesse as alergias.

Deu certo: minhas mãos pareciam mãos de ciganas, com tantos anéis que haviam. Minhas orelhas, sempre com brincos que mais pareciam sinos. Meus pulsos, sempre cobertos com pulseiras hippie como braceletes.

O colégio passou e fui para a faculdade. Com o tempo, deixei os anéis para trás e fiquei só com os dedos.

Ah! Um detalhe importante: desde que me conheço por gente, eu roo minhas unhas.

Passei pela faculdade, desemprego, emprego, mudança de cidade, solteirice e casamento com os dedos assim: sem anéis e com unhas roídas. Deixei as bijuterias de hippie para trás e trouxe comigo as jóias de família, mas sem usá-las, pois eu era uma cabeça de bagre que não tinha cuidado com as coisas...

... até meu Kraken e eu sermos formalmente apresentados, fazendo que um deixasse de se esconder do outro...

Para selar esse convívio, voltei a usar anéis. Os de ouro. Alguns agora vivem nos meus dedos de forma permanente, em ambas as mãos.

Para que eles não fiquem deslocados, parei de roer as unhas. Agora, passo cremes, óleos e esmaltes. Nunca tive unhas tão longas e fortes quanto agora.

Fazem um par bonito. Além disso, penso que deixei de ter mãos de criança este ano.

Me casei com este diálogo e decidimos fazer isso com calma.

Quanto à cabeça de bagre que não se importa com as coisas? Eu quero mais é que se foda...

Ribeirão Preto, 27 de julho de 2019


24 de jul. de 2019

A-Ha - Stay on these roads



"Continue, meu amor..."

OLÍVIA

Meu caro, minha cara,

Durante um período da faculdade tínhamos na república uma cachorra chamada Olívia. Ela era uma linda Pit Bull red noise com músculos bem definidos, um latido muito grosso e alto e uma personalidade que mais parecia a de um labrador.

Mais tapada, impossível.

No entanto, era ótimo morar com ela. Os entregadores do mercado tinham medo, assim como os vizinhos, os ratos de esgoto que as vezes apareciam no quintal eram exterminados sem dó.

Além disso, ela era carinhosa, brincalhona e muito companheira.

Só nós sabíamos que ela era, na verdade, um ser inofensivo e que eu era o animal mais raivoso da casa.

No começo, não nos demos bem. Ela comeu parte do meu colchão de casal, que ficava na sala fazendo as vezes de sofá. Ela também gostava de pegar minhas meias na caixa de roupas sujas para levá-las ao quintal e ficar cheirando e mordendo.

Quem gosta de cheirar meias sujas?

Mas nos entendemos depois. Eu adorava aquela cachorra.

A dona dela, a Tati, virou minha amiga nessa época. Brinco que, de tanto que brigamos, gastamos nossa cota de discussões dessa vida e desde então nos damos muito bem.

Algumas vezes, eu levava a Olívia para passear. Ela tinha uma coleira do tipo forca, que apertava o pescoço do animal à medida que este se projetava para frente.

Só que com a Olívia isso não adiantava nada. Ela preferia se estrangular, saltar os olhos para fora do globo ocular, perder o fôlego e machucar o pescoço a andar mais devagar.

Nessas ocasiões, eu parava um pouco, pegava a Olívia nos meus braços e a segurava até ela voltar a respirar novamente.

Eu entendo hoje em dia essa ansiedade. Em querer ir, correr, voar e investir nisso, mesmo que a coleira que te prende te machuque mais e mais. E também na necessidade de ter alguém que, na nossa falta de limite, faça isso por nós.

Um dia, estava passeando com ela e até que ela se comportou bem. Morávamos perto de uma rotatória e duas ruas muito movimentadas. Na volta para a casa, tínhamos que passar por essa rotatória e, devido ao volume do trânsito, a Olívia ficou muito assustada.

Para piorar, quando íamos atravessar, um carro acelerou, meteu a mão na buzina e jogo uma luz muito alta para cima de nós.

A Olívia entrou em pânico e começou a pular de um lado para o outro. Não havia jeito de deixar a cachorra mais tranquila.

Nisso, fiz o que consegui fazer: arrastei a Olívia pelo pescoço ao atravessar a rua e fomos correndo para casa. Não foi a melhor saída, mas foi a possivel. Havia tentado levar ela no colo antes, mas quando você tem um animal com algumas dezenas de quilos se debatendo nos seus braços, você precisa de um plano B.

(E planos B nunca são perfeitos. Eles são apenas... Possíveis...)

Depois daquele episódio, mudei o itinerário dos passeios.

No meu último ano de faculdade a Olívia não morava mais com a gente. Ela se mudou com a dona dela para outra cidade. Ainda vi a Olívia mais algumas vezes, mas muito pouco.

Sempre gostei dessa cachorra e, de todos os animais que nunca foram meus, ela tem um lugar especial no meu coração.

A algum tempo ela morreu e confesso que eu tenho saudade dela. Lembro das histórias, dou risada, fico sentimental. Contudo, entre todas as lembranças que tenho dela, a mais marcante foi do dia em que o motorista daquele carro foi maldoso com a gente.

E da forma como reagimos.

Não da melhor maneira.

Mas da maneira possível.

Ribeirão Preto, 24 de julho de 2019


21 de jul. de 2019

DOMINGO

Meu caro, minha cara,

Meu marido diz que, aos domingos, fico triste.

Não sei se é isso que sinto, mas, para não me alongar na conversa, eu concordo com ele.

Os domingos são dias que eu considero parados e talvez essa inércia que me "abraça" sem eu perceber.

Os sábados para mim são sagrados: dias de diversão e deleite, não importa se de manhã, tarde ou noite, dentro ou fora de casa.

Mas os domingos?...

Corro para fazer o almoço e estender a roupa, aproveitando o sol seco dessa cidade. Chego na sacada e vejo folhas caídas e o canavial embebido em mormaço.

Os domingos eram diferentes quando criança. Era o dia de ver meus primos, comer em meio a muita bagunça e depois brincar, brincar e brincar.

Mas nos mudamos para o interior e praticamente nunca mais nos vimos.

Eu cresci e casei. Virei adulta e responsável.

Não brinco mais.

Ribeirão Preto, 21 de julho de 2019.




19 de jul. de 2019

CRIANÇA VIADA

Meu caro, minha cara,

Ah! Como é bom fazer aniversário! Dia perfeito para pedir e receber atenção, confete, presente, estar no alvo de muita gente, se sentir especial.

Dia para extravasar, se soltar, falar "não sou obrigada" e ser indulgente com si mesma e exigir o mesmo dos outros.

Ser perdoada dos pequenos pecados, ter uma dose extra de holofotes, usar a felicidade como o embuste perfeito para falar a verdade.

Ter o ego massageado quando, na verdade, queria massagem nas costas e dar o mesmo destino às mãos, pés, olhos, nariz e boca.

Voltar a ser criança e ser perdoada por se querer viada, com muito glitter e salto alto...








Ribeirão, Preto 19 de julho de 2019

15 de jul. de 2019

AI DE MIM...

Meu caro, minha cara,

Hoje a noite, enquanto esperava o horário para começar minha terapia, eu peguei um livro na recepção com sonetos do Pablo Neruda.

Abri o livro ao léu e li um soneto.

Confesso que não consegui interpretar tudo o que li, mas eu gostei do poema. Era bonito, envolvente, cálido.

Quando falei a respeito disso para minha terapeuta, ela citou Clarisse Lispector: "Achar bonito também é uma forma de entender".

No momento em que disse isso, lembrei de um filme chamado "Tempos de paz". Quase no final do filme há um monólogo, retirado de uma peça chamada "A Vida É Sonho", aonde o personagem principal, Segismundo, compara sua vida com a do pássaro, fera, peixe e riacho; todos seres mais singelos e simplórios que o próprio homem, mas mais livres que ele próprio.

Um monólogo que me toca fundo toda vez que o leio...

Ele é um discurso de comparação e tristeza, feito pelo filho de um rei medieval, replicado por um ator judeu fugindo do nazismo, achacado por um torturador brasileiro que não entendeu nada do que se tratava seu discurso, mas se emocionou com as palavras e a tristeza do outro.

Mas este não é o único monólogo que me chama a atenção.

Shylock, em muitos momentos, me representou. Com seu discurso de comparação, ódio e vingança, me fez me sentir confortável em saber que alguém - mesmo que na dramaturgia - sabia que não havia diferença entre eu e o outro e que, por isso, poderia devolver a paga maldita que recebi um dia sem pedir. Direitos iguais, consequências iguais.

"Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito".

Olho por olho, dente por dente.

Ao terminar de contar sobre os monólogos, percebi que trago comigo dois discursos belíssimos, mas com sentimentos que me corroem por dentro.

Ao me deparar com Neruda e seus sonetos quentes, amorosos e sinceros, do que me lembro? Tristeza e raiva...

Ai de mim, ai, pobre de mim...

Ribeirão Preto, 15 de julho de 2019.


14 de jul. de 2019

COMPLEXO COMPLEXO

Meu caro, minha cara,

Quando estava na faculdade de psicologia, um dos mistérios mais aguardados para serem desvendados era o famoso complexo de Édipo.

Em qualquer lugar que se lia a respeito, a resposta era uma só: Édipo matou o pai para ficar com a mãe. A interpretação era quase tão literal quanto: o filho mata o pai (figura que representa autoridade) para ficar com a mãe (figura que representa o prazer).

No primeiro ano, esse assunto foi tratado de uma forma que, confesso, não achei muito inteligente por parte do professor que dava a matéria. Digo isso porquê o "abençoado" do professor "confirmou" que o tal complexo era isso daí mesmo, filho querendo matar o pai para ficar com a mãe, tanto no aspecto figurativo quanto no literal (em alguns casos).

Agora, pense comigo: um bando de cabeças de bagre que mal saíram da adolescência estão na frente de um cara que representa uma figura de autoridade ouvindo dele que o complexo de Édipo não é uma metáfora.

Dá nó em muito cérebro.

Fora a culpa que começa a ferver na cabeça.

Cinco anos se passaram e nada de alguém querer explicar o que era essa joça. Parecia que, cada vez mais, o barato dos professores era colocar teorias e mais teorias complicadas sobre o assunto, tornando as interpretações algo tão truncado e místico quanto desenhar um mapa astral.

Entretanto, no meio do último ano, uma professora baixotinha e de voz fina perguntou para toda uma classe se o conceito do complexo de Édipo estava claro para todo mundo.

O silêncio se instaurou na Terra naquele momento.

Daí, ela explicou: complexo de Édipo é o termo dado ao momento em que a criança percebe que, para viver em sociedade, ela não pode sair fazendo tudo o que dá na telha. Ela tem abrir mão de algumas coisas se quiser outras.

Em suma, ela tem que escolher o que quer para si. No processo, ela também escolhe o que quer rejeitar.

(Nem sempre é o que quer rejeitar, mas o que precisa rejeitar... E isso dói)

Por isso que muita gente gosta de dizer que "cada escolha é uma renúncia" ou então que "cada SIM esconde infinitos NÃOS".

Mas por que eu trouxe esse assunto?

Talvez porque eu esteja num momento em que eu tenha que escolher o presente ao invés de universos paralelos.

Talvez eu tenha que escolher manter o que eu tenho. Ou mudar tudo drasticamente.

Talvez eu não esteja com medo de escolher algo que me faça feliz, pois talvez eu ainda nem tenha pensado o que me faz feliz de fato.

E essa é a parte mais triste de tudo...

Ribeirão Preto, 14 de julho de 2019

3 de jul. de 2019

OLOR

Meu caro, minha cara,

Lembro de um livro que eu li, já faz um tempo, que conta a história de um cara que tinha o olfato mais apurado que já existiu. entretanto, ele próprio não tinha cheiro. O fato o tornou desesperado: era como se não existisse. então, ele foi atrás do "perfume da existência" (ou do "amor", não me lembro muito bem). Para isso, ele precisou coletar o odor de outras pessoas - mulheres, no caso. Pena que, para isso, ele as matava.

O livro se transformou em filme (com o mesmo nome) e, para mim, o filme foi uma droga por um único detalhe: mudaram o mote para os assassinatos que ele cometia.

Mas, desde que o li, sempre me lembro dele em momentos aleatórios. Pelo menos, ultimamente tenho me lembrado muito dele.

Tudo porque perdi o meu perfume.

A empresa que o fabricava está com falta da matéria prima principal. Caso volte a produzi-lo, será ó daqui uns anos, quando o manejo da seiva voltar a ser sustentável.

Enquanto isso, procurei substitutos e quase achei algo de que gostasse.

Mas ainda não é o meu cheiro.

Ontem à noite meu marido me apresentou outro perfume. Era bom, muito bom.

...mas ainda não é o meu cheiro...

Assim como o rapaz do livro, eu busco por essa existência que, para ele, era o tal perfume. Sem ele, o rapaz apenas existia e ocupava espaço. Quando ia embora de algum lugar, o lugar sumia. Tragicamente deixava de existir.

Dizem que a memória olfativa é a memória mais primitiva que temos.

Concordo.

Como mostrado no livro, não ter algo para se deixar para trás (como um perfume) é não ter algo para se lembrar. É não ter vínculos. E não nos dedicamos ao que não estamos vinculados.

É muito ruim a sensação de se sentir apenas como matéria...

Ribeirão Preto, 03 de julho de 2019