8 de set. de 2021

POTINHOS, LEMBRANCAS E CHEIRO DE SOL

Meu caro, minha cara.

"O que é esse bando de potes aqui?"

"E eu que sei? Quem deve ter colocados aí foi teu pai!"

"Esses potes estão novinhos..."

"Ah, Carolina... você não conhece seu pai? Ele enfurna tudo e depois se esquece!"

"Mas você quer me convencer que o pai comprou esses potes sozinho, sem você saber?"

"Ah, Carolina! Sei lá quando isso foi comprado!"

"A notinha tá aqui. Deixa eu ver: abril de 2018... Você ainda quer que eu acredite que você não sabia de nada?"

"Ah... eu não sei, Carolina! Teu pai que guardou, deveria ver com ele."

"Mas você era a dona da casa e vem me dizer que não sabia?"

"Ah, Carolina! Não enche meu saco!"

"Quer dizer então que você tinha potes novinhos, bonitinhos, e preferiu ficar com aqueles potes quebrados e velhos lá na cozinha?"

"Eu não escolhi nada! Seu pai que enfurnou tudo aí do lado do computador! Ele sabe que essas coisas aí da parte debaixo eu não mexia!"

"Então isso significa que você não sabia o que tinha na sua própria casa?"

"O que você quer, Carolina? Quer me ver no chão? Se acha muito espertinha, muito doninha de si falando essas coisas, mas nunca passou pelo que eu passei. Você não sabe o que foi viver num lugar onde nunca pode usar suas próprias coisas! E tudo isso pra que? Pra vocês darem tudo de mão beijada por aí."

"Mas vocês tinham coisas que nunca usaram. Além disso, o Ricardo e eu já  temos nossas casas montadas. Pra que mais?"

"Pra uma hora de necessidade! Quando forem receber alguém, fazer um almoço, um jantar, sei lá! Tanta coisa boa que vocês poderiam ter ficado! Olha só essas toalhas, vocês não encontram mais esse barrado por aí!"

"Mãe, você acabou de reclamar que não pôde usar as suas coisas por causa da vó; agora você quer que a gente deixe de usar nossas coisas para usar as suas? Você praticamente quer fazer com a gente o que a vó fez com você!"

"Nao tem nada a ver uma coisa com a outra! Ela colocou os panos velhos dela, as quinquilharias velhas dela antes que eu pudesse colocar as minhas coisinhas e os meus enfeitinhos pra decorar a minha casa do jeito que eu queria. O que eu tô falando é que não precisa jogar as suas coisas fora, parar de usar. Mas guarda essas daqui. São coisa boa, coisa fina!"

"Você sabe que a gente não vai fazer isso, não é?"

"Ah! Quer saber? QUE SE DANE!Já que vocês não dão valor, então dá tudo mesmo. Dá pra gente que vai usar, porque vocês parecem que tem vergonha das coisas que tem aqui em casa!"

(e lá se vai a imagem dela, puta da vida como sempre, sempre que via suas ideias e vontades contrariadas)

"Você já parou pra pensar que sempre que eu imagino a gente conversando, a gente sempre discute?"

"Ah... Mas é claro! Pra você eu sempre fui a bruxa, não é mesmo?"

"Na verdade, eu sempre te achei triste."

(silêncio. Até a minha imaginação, baseada no conhecimento e impressões que tinha dela enquanto viva, resolveu bugar)

(nesse momento, lembro quando conversamos numa Páscoa qualquer. Quando ela me disse que não faria terapia e que não conseguia lidar com a realidade da forma como eu a encarava: não conseguia encarar o fato de que muitas coisas na própria vida não saíram como desejava, incluindo a própria filha, a quem pensava que era uma porra loka perdida...)

(a imagem dela vai embora)

"Até mesmo na minha imaginação a gente briga", pensou eu com meus botões.

(depois disso, vou pegar as últimas peças de roupa no varal. Eram peças de roupa que iremos doar - a última leva de doação das coisas que, um dia, foram dos meus pais. Pego cada uma daquelas blusas e lembro como ela ficava bonita com cada uma delas. Em uma, eu segurei contra o rosto e senti o cheiro de sol e sabão em pó. Era o cheiro dela, mais do que qualquer perfume)

"Eu sinto muito por não conseguirmos nos acertar."

(silêncio. Não consegui achar respostas. Em parte, porque ela se foi antes disso acontecer. Mas também porque a única forma de se acertar com ela seria acatar passivamente tudo o que ela queria)

"Eu sinto muito que as coisas não saíram como você quis, mamãe, mas não vou pedir desculpas por nada..."

Ribeirão Preto,  8 de setembro de 2021.