29 de dez. de 2021

A MEMÓRIA QUE NÃO SE QUER TER

 Meu caro, minha cara. 


As pernas doem, mas os pés e tornozelos doem mais.

A semana está... "intensa"...

Olho para cada documento e sou (quase) sumária: "vai para o lixo", penso eu. "E quando o advogado me liberar, jogo fora mais outro tanto".

No chão, o que antes era importante agora não é nada além de informação inútil. 

Paro um pouco e leio o que escrevi. Apago a metade. Acho piegas, mesmo que eu me ache no direito a ser piegas.

Paro outro pouco e descanso. Mas logo volto. As mãos coçam para jogar fora mais papel inútil. 

Só que os papéis inúteis estão diminuindo...

Num dos muitos pacotinhos, achei uma 3x4 do Tado de terno branco e gravata borboleta. Gostaria de ter conhecido ele pessoalmente, não apenas da memória de outras pessoas.

Minha avó quase nunca falava dele. Da mesma forma que nunca falou do meu pai quando era criança. 

(significativo uma mãe nunca falar de seu filho quando era criança, não?)

Uma pena. Eu queria saber como meu pai era quando criança.

Mas todos que o conheceram assim já estão mortos.

Todos os que a conheceram quando jovem também já morreram. Quem realmente a conheceu e quem realmente sabe o que aconteceu.

Todos mortos.

Quanto a mim, só lembro de fragmentos, opiniões eviesadas e de muitas lacunas...


Ribeirão Preto, 29 de dezembro de 2021.




19 de nov. de 2021

A MAIS INTELIGENTE DA CASA

Meu caro, minha cara.

Digo e repito: o ser mais inteligente aqui em casa é a Margot.

Não que o QI meu e do meu marido seja baixo, não é esse o caso.

Mas a Margot é, de longe, o mamífero mais inteligente entre essas paredes que chamamos de lar.

Ela não dá nó em pingo d'água. Ela não canta a música tema do GOT miando (acho aquele vídeo um sarro). Tampouco participa de um certo dueto de Puccini.

Ela não faz nada de extraordinário,  exceto ser espontânea e, espontaneamente, busca ter e fazer as coisas que gosta.

Ela não é hedonista e nem mimada. Até porque, para um gato, ela obedece bastante a gente. Mas é um prazer ver como ela lida com qualquer adversidade: ela dá de ombros a obstáculos e vai atrás do que quer, seja um petisco, um besourinho ou um brinquedo. Quando o Juvenal está dormindo e ela quer brincar, ela o acorda (se ele gosta de ser acordado, aí já é outra coisa...). Quando a Riccota está mau humorada, ela desvia do seu caminho e continua. Quando ela quer colo, ela pede pra gente.

Ela não liga para essas coisas que, se fosse comigo, eu ligaria; coisas como "o que os outros vão pensar?" ou "será  que devo/não devo fazer algo?"... "será que isso é encanação minha?" sabe? esse tipo de coisas...

Ela é engenhosa, curiosa, tem energia e é muito meiga (exceto quando come as minhas plantas).

Ela me lembra sempre que é preciso se mexer para se ter o que quer; que conseguimos algo quando vamos atrás.

É o que ela faz todos os dias.

Por isso a considero a mais inteligente por aqui.
Já disse em mais de uma ocasião que a gente nunca sabe de onde vem a informação ou a ideia que nos fará pensar/agir diferente.

Nos últimos tempos, essa filhotinha tem me ensinado muito. Mas é preciso praticar também.
Pois bem: quero ser inteligente como ela e ter prazer com o que é simples.

Obrigada, meu bebezinho...


Ribeirão Preto,  19 de novembro de 2021




5 de nov. de 2021

CAMPO COBERTO DE FLORES

 Meu caro, minha cara.


Caminhei pela grama macia até o topo do campo, com seu aclive suave e um sol e céu límpidos acima de mim.

Na mão, dois buquês.

Ajoelho para deixar o primeiro buquê no campo ensolarado. Acaricio as rosas pensando que eu acariciou suas mãos. Mãos sempre macias, quentes e gordinhas, cheias do afeto que poderia dar.

"Sempre te dei flores vivas porque queria que elas continuassem vivendo e florescendo ao seu lado", como se o ciclo de florescer e fenecer fosse uma exclusividade só das flores, não da planta em si.

Hoje, te dou um buquê de flores mortas, mas lindas, pois a beleza da flor acaba num momento, assim como a sua beleza também se foi.

Depois, me volto para o segundo buquê. São astromélias amarelas. 

"Nunca te dei flores. Acho que foi um desperdício de tempo não ter te dado buquês antes. Nem sei ao certo sua cor preferida e eis-me aqui, com flores amarelas".

"Sinto sua falta. Sinto muito a sua falta..."

("por que vocês tinham que levar ao pé da letra a história de que um não podia viver sem o outro?")

Enquanto penso em tudo isso e procuro sublimar a minha saudade escrevendo, um tratorista passa atrás de mim perguntando as horas. "São 10:18h", respondi.

"Obrigado!"

"De nada..."

Isso me faz lembrar que a vida segue, o tempo passa e o campo florido se prepara para receber mais flores mortas.

(...)

Voltando para o carro, escuto as cigarras e vejo flamboyants floridos ao longe, perto de coqueiros sem cocos.

"Vocês também florescerão e fenecerão", digo a elas e às cigarras.

E digo isso a mim mesma, enquanto fecho a porta do carro e ligo o motor para ir embora daqui...


Mococa, 5 de novembro de 2021.








16 de out. de 2021

TROUXA ENCHARCADA DE SANGUE

 Meu caro, minha cara.


Minha mãe sempre me contava algumas histórias sobre a minha avó.  Embora me lembre de quase todas, há uma que sempre me marcou, mas nunca havia entendido por qual motivo.

Quando minha mãe era criança, ela e a família eram colonos em uma fazenda. Um dia, minha avó foi chamada para ajudar no parto de uma conhecida.

O colchão, a roupa de cama e camisola ficaram ensopados de sangue, porque foi um parto muito difícil.

Mas mãe e bebê sobreviveram (segundo minha mãe).

Para ajudar a família (pois demoraria dias ou semanas até a parturiente melhorar), minha avó pegou todas as roupas usadas no parto para lavar.

Embalou tudo dentro de uma trouxa enorme e foi até o rio que havia por perto. Fincou uma estaca em cada lado do rio (não era muito largo e profundo onde ela fez isso), amarrou uma corda na ponta de cada estaca e, por fim, amarrou a trouxa de roupa no meio da corda, tomando o cuidado para que tudo ficasse bem preso e não fosse levado pela correnteza.

Da forma como ela fez, a corredeira suave do rio fazia com que suas águas passassem por entre a trouxa, levando para baixo toda a sujeira do parto e todo o sangue. 

Não me recordo agora quanto tempo minha mãe disse que essa trouxa ficou amarrada nessa corda, dentro do rio.

Um dia? Dois? Uma semana?

Realmente, não tenho como dar uma estimativa de tempo confiável. 

Mas sei que, ao final desse período, minha avó buscou a trouxa com as roupas e todo o serviço pesado havia sido feito pelo tempo, pela água e pelo engenho do seu raciocínio. 


(...)


Como disse acima, até então não havia me dado conta do porquê essa história ficou na minha memória desde o momento que eu a escutei.

Mas hoje eu percebi.

A violência de trazer algo novo para este mundo, a debilidade que isso provoca, a preservação do que se é importante, a ação do tempo nas coisas e pessoas, a sagacidade do simples, o poder da atitude...

Tudo hoje fez sentido...

E, fazendo sentido, me senti trouxa... Uma trouxa muito pesada, que não sabe ao certo o que há de novo no mundo, apenas esperando ansiosamente um rio de lágrimas para me lavar e levar embora tudo aquilo que não faz mais sentido algum...


(...)


Céus... Quando isso tudo vai ter um fim?...


Ribeirão Preto,  16 de outubro de 2021...




10 de out. de 2021

DEUSES DE UMA NOITE SÓ

Meu caro, minha cara.


Duas noites atrás conheci dois deuses em meu sonho.

Um casal, cujo único objetivo nessa terra era ficarem vivos e garantirem. (por qualquer meio) que seus filhos também se mantivessem assim.

E quando eu digo "por qualquer meio", eu falo muito sério.

Porque estavam dispostos a matar, enganar, subjugar, encarcerar e fazer sofrer quem quisesse impedir esses dois objetivos.

Além disso, sempre que permitido, aumentavam a prole, pois as imagens que eu tive davam a entender que o índice de mortalidade deles na infância era muito alto. Porém, essa preocupação não era apenas pelos pequenos e desprotegidos: gerar uma criança significava dar a elas uma parte de si, uma parte da uma força, na esperança que, quando crescidas, pudessem também lutar para que os de sua espécie também sobrevivessem e prosperassem.

No entanto, a noite em que eles me foram apresentados também foi a noite em que fiquei sabendo que seus planos foram frustrados. Pois sua casa foi invadida e seus filhos, caçados. Vi as crianças mais novas, deuses sem algum poder, serem arrancadas do colo dos irmãos mais velhos, enquanto o casal tentava (em vão) ofender seus ofensores com a força dos braços e as unhas em forma de adaga.

Foi um massacre. Ambos os lados tiveram suas baixas, mas o mais cruel foi ver os filhos daqueles deuses inertes, com peito e estômagos feridos, com gargantas rasgadas e olhos frios e fechados.

Os dois deuses, adultos, ao verem que sua permanência na própria casa era impossível, fugiram para algum canto feio e sujo, longe e mal afamado o suficiente para espantar invasores por si só.

Aos prantos, ambos fizeram as únicas coisas que poderiam fazer no momento: chorar muito, buscar consolo um nos braços do outro, jurar vingança e buscar se fortalecer.

Para isso, precisavam de ajuda e ela não tardou. Sabendo que os dois deuses foram vencidos e os pequenos deuses, mortos, seus apoiadores (ou discípulos, ou adoradores) vieram ao seu encontro. Passavam por um longo corredor, cheio de lâminas, que testavam a vontade dos crentes até o poderoso e triste casal. Enquanto a deusa perdia suas forças e, pouco a pouco via seus dedos e pele se transformarem em palha, seu par sofria transformação parecida, com as mãos se transformando em garras e o rosto, o semblante de um cachorro preto.

Com a ajuda de seus adoradores, os dois se deitaram em uma canoa feita de juncos e puderam descansar sob uma cama de pétalas de rosas brancas, rosas e vermelhas. As últimas pétalas foram deixadas para serem jogadas delicadamente sobre o rosto de palha e o rosto de cão.

Eles iriam dormir, protegidos parte pela escuridão da noite, parte pelo fogo das tochas que os discípulos mantinham acesas.

Para embalar o sono dos deuses, uma mulher velou por eles. Estava vestida de branco, tinha os cabelos soltos e muito pretos. Sobre a cabeça, uma guirlanda de flores vermelhas. Durante a canção que entoava, dançava em rodopios largos, ritmados e lentos. Perguntei a uma das pessoas que ajudaram a preparar o sono dos deuses quem era a mulher: uma sacerdotisa, uma virgem, uma noiva. Eles disseram que não era nenhuma coisa, nem outra. Eles não precisavam de ninguém especial, pois o importante era que alguém se importasse o suficiente para estar ali por eles, com e para eles.

Enquanto a mulher cantava e dançava, os deuses adormeceram e, pelo menos durante aquela noite, dormiram e puderam se esquecer que um dia haviam tido filhos e que, se lembrando deles, esqueceram que um dia foram assassinados por causa do medo transformado em inquisição.

Ao amanhecer, nas ruínas do refúgio, os apoiadores ainda estavam lá, no alto do edifício antigo e carcomido pelo tempo e vegetação. A claridade mostrava que o prédio quase não tinha mais telhados e apenas poucos trechos ainda mantinham paredes em pé, em detrimento das árvores e trepadeiras. Mesmo assim, era um belo local.

Foi também na claridade do dia que eu percebi quem eram aqueles adoradores: párias, deformados, doentes, velhos, pessoas excluídas de forma geral.

Na canoa feita de juncos, deus e deusa acordam, já com seus rostos "normais" de volta. De mãos dadas, foram de súdito a súdito agradecer pela vigília, enquanto impunham as mãos sobre sobre suas cabeças e davam beijos nos rostos de todos.

E prometeram que, enquanto não tivessem seus próprios filhos novamente, adotariam todos aqueles que os guardaram naquela noite, que os defenderiam e transmitiriam a eles as coisas que conheciam, visto que eles andavam por sobre a terra por muitas e muitas gerações e absorveram um número sem fim de informações e sabedoria.

Por últimos, os deuses olharam para mim e pegaram na minha mão com ternura. Lembro da expressão deles: ela, de vestido vermelho e agora com a girlanda de flores vermelhas lhe cingindo a testa, ele, com a barba volumosa e preta e semblante amigo.

Também me lembro dos sorrisos que me deram: um sorriso sem dentes, um sorriso satisfeito, um sorriso que continha uma longa história. Nossas mãos se separaram, eles começaram sua caminhada para o mundo novamente e eu acordei.

Ribeirão Bonito, 10 de outubro de 2021.




7 de out. de 2021

OH, F3&€$!!! CAÍ NA BESTEIRA DE LER NIETZSCHE DE NOVO!!!

Meu caro, minha cara.

Poderia começar com uma frase impactante, do tipo "só consegui terminar de ler 'Zaratustra' e entender alguma coisa por agora, depois de 15 anos de tentativas frustradas e bem nesse momento de luto, por causa da morte dos meus pais."

Mas acho que seria muito forçado.

Não que essa seja uma afirmação mentirosa. Mas é meio exagerada. Prefiro dizer que conseguir ter lido e entendido alguma coisa do livro daquele louvável doido no momento terrível que estou vivendo agora é, pelo menos, uma coincidência muito grande.

O que me faz pensar que ler loucuras e verdades "cuspidas" na sua cara só farão sentido quando seu senso de sentido "normal" for para o saco a algum tempo.

E isso me leva a cogitar a hipótese que, para loucuras e verdades, seu espírito deve estar fora da ordem para entender. Precisa estar extra-ao-ordinário.

Sendo extra, fora, além da fronteira. Aí você estará no terreno certo (ou melhor: no terreno incerto das possibilidades, dos caminhos, dos medos revelados, do pânico e do ponto de partida).

Você será a carta zero do tarô. O LSD das experiências atuais sobre o uso de psicotrópicos para tratamento de depressão. Será felicidade e angústia por não ter mais seus referenciais de família e emprego. Ou daquilo que você considera como seus referenciais, a pedra angular da sua vida, passado, futuro e caráter.

Será sesta, floricultor amador, dona de casa e da casa. Será atenção,  preocupação, desapego, descanso, esperança, sonhos, pequenas risadas, pequenos agrados e ações pequenas e importantes.

Experimentará tudo. Dormirá e experimentará quase nada. E pensará: "Isso é que é ter tempo para si mesmo?".

Oh, meu caro e minha cara... Durante a dor e na dificuldade de aceitar consolo, caí na besteira de ler Nietzsche de novo!!! E o pior!!! Vou fazer umas tantas outras vezes! Falo isso como uma profecia e como uma sentença!

"Bem aventurados são aqueles que estão dispostos a pirar o cabeção,  pois só assim terão uma chance maior de entender as palavras daquele louco sifilítico!!! Que o caos seja louvado!!!"

"Tapas na cara! É o que nos aguardam! Tapas na cara, viés histórico e conscientização inconveniente e necessária é o que nos aguardam, meu caro e minha cara!"

Tinha medo de romper com o mundo, mas o mundo me rompeu inteira e agora me aparece esse mundo novo, do declínio, construção e conquista, tocando no meu cotovelo com a mão gelada e em brasa. Ele me toca com troça, firmeza e com muita verdade. A verdade que se tatua na pele para se lembrar que apenas quem age aprende e que, para aprender mais - se maravilhar com o novo e se deitar nas plumas da satisfação - faz-se necessário agir, se deixar atingir, se deixar morrer, doer e nascer.

Pois quem se deixa atingir, sentir, doer, morrer, se esquecer e nascer é quem vive de novo e de novo e de novo.

(Com ênfase no "morrer", pois do pó viemos e ao pó voltaremos - e isso não é bíblico ou cármico. É químico)

(...)

Aos poucos, me transformo em pó, nitratos, fosfatos, carbono e buffet de bactéria. Fecho o livro e reflito. Não sobre ele, mas sobre mim. Aos poucos, respiro fundo, pois respirar ainda é coisa inédita. Aos poucos, as palavras se assentam, voam, chocam, morrem e ganham vida.

Aos poucos aceito essa desintegração que me unirá um dia a algo lá na frente.

Aos poucos... voar, pousar, dormir... para depois acordar e ver no que vai dar...

(...)

Obrigada, velho-maluco-que-teve-uma-vida-disfuncional-(de-acordo-com-os-padrões-da-sociedade-da-época). Obrigada por me lembrar que tenho presas, não apenas molares.

E que tenho escolhas.

Eu já havia me esquecido disso.

Ribeirão Preto, 7 de outubro de 2021.



8 de set. de 2021

POTINHOS, LEMBRANCAS E CHEIRO DE SOL

Meu caro, minha cara.

"O que é esse bando de potes aqui?"

"E eu que sei? Quem deve ter colocados aí foi teu pai!"

"Esses potes estão novinhos..."

"Ah, Carolina... você não conhece seu pai? Ele enfurna tudo e depois se esquece!"

"Mas você quer me convencer que o pai comprou esses potes sozinho, sem você saber?"

"Ah, Carolina! Sei lá quando isso foi comprado!"

"A notinha tá aqui. Deixa eu ver: abril de 2018... Você ainda quer que eu acredite que você não sabia de nada?"

"Ah... eu não sei, Carolina! Teu pai que guardou, deveria ver com ele."

"Mas você era a dona da casa e vem me dizer que não sabia?"

"Ah, Carolina! Não enche meu saco!"

"Quer dizer então que você tinha potes novinhos, bonitinhos, e preferiu ficar com aqueles potes quebrados e velhos lá na cozinha?"

"Eu não escolhi nada! Seu pai que enfurnou tudo aí do lado do computador! Ele sabe que essas coisas aí da parte debaixo eu não mexia!"

"Então isso significa que você não sabia o que tinha na sua própria casa?"

"O que você quer, Carolina? Quer me ver no chão? Se acha muito espertinha, muito doninha de si falando essas coisas, mas nunca passou pelo que eu passei. Você não sabe o que foi viver num lugar onde nunca pode usar suas próprias coisas! E tudo isso pra que? Pra vocês darem tudo de mão beijada por aí."

"Mas vocês tinham coisas que nunca usaram. Além disso, o Ricardo e eu já  temos nossas casas montadas. Pra que mais?"

"Pra uma hora de necessidade! Quando forem receber alguém, fazer um almoço, um jantar, sei lá! Tanta coisa boa que vocês poderiam ter ficado! Olha só essas toalhas, vocês não encontram mais esse barrado por aí!"

"Mãe, você acabou de reclamar que não pôde usar as suas coisas por causa da vó; agora você quer que a gente deixe de usar nossas coisas para usar as suas? Você praticamente quer fazer com a gente o que a vó fez com você!"

"Nao tem nada a ver uma coisa com a outra! Ela colocou os panos velhos dela, as quinquilharias velhas dela antes que eu pudesse colocar as minhas coisinhas e os meus enfeitinhos pra decorar a minha casa do jeito que eu queria. O que eu tô falando é que não precisa jogar as suas coisas fora, parar de usar. Mas guarda essas daqui. São coisa boa, coisa fina!"

"Você sabe que a gente não vai fazer isso, não é?"

"Ah! Quer saber? QUE SE DANE!Já que vocês não dão valor, então dá tudo mesmo. Dá pra gente que vai usar, porque vocês parecem que tem vergonha das coisas que tem aqui em casa!"

(e lá se vai a imagem dela, puta da vida como sempre, sempre que via suas ideias e vontades contrariadas)

"Você já parou pra pensar que sempre que eu imagino a gente conversando, a gente sempre discute?"

"Ah... Mas é claro! Pra você eu sempre fui a bruxa, não é mesmo?"

"Na verdade, eu sempre te achei triste."

(silêncio. Até a minha imaginação, baseada no conhecimento e impressões que tinha dela enquanto viva, resolveu bugar)

(nesse momento, lembro quando conversamos numa Páscoa qualquer. Quando ela me disse que não faria terapia e que não conseguia lidar com a realidade da forma como eu a encarava: não conseguia encarar o fato de que muitas coisas na própria vida não saíram como desejava, incluindo a própria filha, a quem pensava que era uma porra loka perdida...)

(a imagem dela vai embora)

"Até mesmo na minha imaginação a gente briga", pensou eu com meus botões.

(depois disso, vou pegar as últimas peças de roupa no varal. Eram peças de roupa que iremos doar - a última leva de doação das coisas que, um dia, foram dos meus pais. Pego cada uma daquelas blusas e lembro como ela ficava bonita com cada uma delas. Em uma, eu segurei contra o rosto e senti o cheiro de sol e sabão em pó. Era o cheiro dela, mais do que qualquer perfume)

"Eu sinto muito por não conseguirmos nos acertar."

(silêncio. Não consegui achar respostas. Em parte, porque ela se foi antes disso acontecer. Mas também porque a única forma de se acertar com ela seria acatar passivamente tudo o que ela queria)

"Eu sinto muito que as coisas não saíram como você quis, mamãe, mas não vou pedir desculpas por nada..."

Ribeirão Preto,  8 de setembro de 2021.




13 de ago. de 2021

"...TODOS OS GATOS SÃO PARDOS"

 Meu caro, minha cara.


Há um certo charme no gueto. É algo que não sei explicar.


Mas a noite, a sombra, o que é velado, feio e sujo... me atraem.


Dirijo meu carro pela Baixada. As lojas – de todos os tipos – estão fechadas. Só os bares e as farmácias estão abertos.


E os bordéis, é claro.


Contrariando as recomendações de todos, dirijo devagar pelo Centro. O fato de não ter trânsito ajuda muito nisso. Gosto de olhar os detalhes das construções que estão escondidas atrás das fachadas. Os arabescos esquecidos me confortam, assim como as esquinas.


Nelas sempre existem as mulheres mais corajosas que conheço. Pois é preciso coragem para se vender. Coragem ou desespero. Ou os dois. Mas prefiro pensar que, apesar de todas as justificativas, é preciso coragem.


E até um certo bom humor.


Pois é só na Baixada que o top rosa pink encontra a saia de elanca ciano e a sandália plataforma preta e tudo fica bem.


É lá que o ambulante aparece de banho tomado, cheirando a desodorante Avanço e chinelo limpo, andando pelas calçadas com prazer e pensando na féria do dia.


Ou que o estudante ganha a sensação de liberdade e independência.


Homens e mulheres. Fumando cigarro ruim (por ser barato). Bebendo cerveja ruim (por ser barata). Rindo ou metendo o pau em alguém (por ser de graça). Bebendo, fumando, rindo e xingando até o momento do “por que não?”, que antecede a caminhada animada até um lugar mais reservado para um boquete ou uma trepada rápida, um gozo, um pagamento, “até mais”.


Só que também há espaço para o desejo contido, negociado a boca pequena, resultando numa caminhada longa (mesmo que curta) do temporário casal, para o mesmo desfecho. Ele, barba por fazer, olhos para o chão e camisa rota. Ela, vestidinho apertado, decote sem recheio, de braços cruzados e uma fivela no cabelo.


Há beleza na melancolia. E no vulgar.


Continuo dirigindo. Dobro esquinas, sempre devagar, procurando a próxima cena, a próxima vitrine.


Um ou outro trabalhador caminha pela calçada, indo ou vindo de um ponto de ônibus. Como será sua casa, as pessoas com quem convive, seus pensamentos?


Quais são suas expectativas e opiniões?


Passo num buraco sem querer e o carro sente. “Tenho que mandar trocar os amortecedores”, lembro eu.


Olhando o feio, o sujo, o vulgar alheio, lembro da minha própria escuridão.


Aceno para ela. Ela responde. Mas quando vem até mim, fujo. Com meu carro. Chego na avenida e acelero. Como será minha casa, as pessoas com quem convivo, meus pensamentos?


Quais são as minhas expectativas e opiniões?


Por hora, não sei...


"À noite, todos os gatos são pardos", não é mesmo?


Por hora, apenas aceito a sombra alheia. E dirijo. Para longe de mim mesma.


Ribeirão Preto, 13 de agosto de 2021.





27 de jul. de 2021

PODERIA TER SIDO (MAS NÃO FOI)

 Meu caro, minha cara.


"Um bom motorista passa de uma faixa à outra sem passar por cima do olho de gato"

"Mas de onde você tirou essa ideia?"

"Essa é apenas uma mostra da minha imensa sabedoria de vida!"

"Vá à merda, pai"

"Olha... Me respeita, senão eu te deserdo!"

"Deveria ter feito isso antes de morrer, agora não dá mais"

"Mas você continua canalha!"

"Igual ao meu pai..."

"Canalhinha..."

(rimos. Ou melhor: rio sozinha, no meu carro, voltando para casa depois do trabalho bem à noitinha)

"Olha o radar"

"Tô olhando"

"Deu seta pra mudar de faixa?"

"(expressão de enfado)"

"Tu me respeita, heim? Ainda sou teu pai!"

"E o que vai fazer? Puxar meu pé à noite?"

"Vou! E com a mão gelada, ainda por cima!"

"Affff... Tá bom, né? Vai te fazer feliz? Então faz. Aqui tá calor mesmo..."

(gritos e protestos hipotéticos, tirados do meu compêndio pessoal sobre o Seu Benedito)

...

"O que é que este filho da puta tá fazendo grudado na traseira do seu carro?"

"Não sei e quero mais que vá pra puta que o pariu. Tô cansada e se essa bosta dessa moto não sabe ultrapassar, eu vou meter o pé no freio pra ver se essa desgraça vaza daqui"

"Muito bem, deixa esse bosta passar"

(a CG me corta gritando pela esquerda, enquanto entro em outro trecho do anel viário)

...

"Pai"

"Oi"

"Tô com saudade"

"Também tô, filha"

"Queria que estivesse aqui comigo agora, tendo essa conversa de verdade, como dois bons ranzinzas..."

"Eu também, meu coração, só que agora você só vai conseguir fazer isso se imaginar"

"Eu sei"

...

"Pai"

"Que é, Carolina?"

"Daqui a pouco eu chego em casa. Você vai embora agora?"

"Vou, mas amanhã você vai pegar o carro, não vai?"

"Vou"

"Então amanhã a gente se fala mais, tá bom?"

"Tá bom..."

(paro o carro na frente de casa, desligo o motor e dou tchau para o dia e para ele...)

(como eu sinto sua falta, papai...)


Ribeirão Preto, 27 de julho de 2021



18 de jul. de 2021

QUASE QUE LEVO UMA SURRA

 Meu caro, minha cara.


Às vésperas de fazer aniversário, com o coração pesado, triste, com raiva e cheio de choro e mágoa, resolvi pôr em prática um conselho e fui fazer uma coisa do qual gostasse muito.


Propus uma volta de moto com meu marido e fomos ao parque depois do café.


Enquanto ele ficou sentado num dos bancos, cabeça abaixada prestando atenção no celular, fui caminhar com a câmera na mão, crente de que não acharia nada por causa do tempo nublado e seco.


Mas me enganei. Ainda bem.


Perto do campo principal, havia vida. Muitas, grandes e pequenas. Fotografei várias e voltei contente.


Na volta, vi a última vida que queria fotografar: um galo enorme, maior que todos os que já tinha visto.


Fui devagar e ajustei o zoom da câmera. Só que ele me notou.


E não gostou.


Quando percebi, ele mirou no meu rumo, ciscou no chão com raiva, estufou o peito e bateu as asas. 


Pensei: "Me fudi!"


Sai de mansinho, com ele me escoltando para fora da passarela. Quando ele viu que eu (ou a minha câmera) não era uma ameaça, sossegou e foi embora.


E eu ri. Ri como a muito tempo não ria. Um riso que pensei que estava extinto.


Até o momento, aquele galo me deu o melhor presente de aniversário que poderia receber...


Ribeirão Preto, 18 de julho de 2021.




10 de mai. de 2021

A ESTRELA E A CRUZ

 Meu caro, minha cara.


Quando o Marcelo morreu, estava no 3º ano do colégio.

Foi uma tragédia: o rapaz tinha 19 anos, havia acabado de ser efetivado na empresa em que tinha feito estágio, estava namorando a garota dos seus sonhos. Próximo a Brasília, um caminhão perdeu o freio e lá se foram quatro alminhas e um Uno Mille para o espaço.

A gente se conheceu quando eu estava no primeiro ano e ele, no último. Foi implicância à primeira vista, implicância que só existe entre irmãos. Encher o saco um do outro era a maneira que a gente tinha de demonstrar carinho; cada um mais empenhado que o outro em achar o xingamento perfeito.

Quando eles acabavam, nós ríamos.

Era legal.

Mas Marcelo morreu e lotamos uma van para ir ao velório, lá em Pirassununga. Caixão fechado, metade da cidade no velório, praça lotada na missa. Chorávamos. Chorávamos como carpideiras. Triste é testemunhar um futuro que prometeu e não cumpriu.

Triste não ver o futuro se cumprir...


Quando ficamos sabendo que a Glória morreu, ficamos pasmos. Fazia um ano que a gente tinha se formado na faculdade e a Glória era aquela pessoa super alto astral. Também, com um marido apaixonado e duas filhas espirituosas, quem não seria alto astral, não é verdade?

Mas a mãe da Glória morreu e a Glória se entregou à tristeza. Tanta tristeza que o coração parou. Parou "do nada" e não quis mais funcionar. Liguei para a clínica escola para saber se era verdade e o pessoal da administração confirmou: parada cardiorrespiratória. 

Ao mesmo tempo em que ficamos sabendo sobre a Glória, também soubemos da Roberta. Ela foi a primeira pessoa que conheci na faculdade. Ela tinha o cabelo comprido e um tiquinho só mais claros que o meu. No terceiro ano, ela largou o curso. Desenvolveu transtorno bipolar, condição que eu não acho que souberam lidar muito bem. Pelo menos foi o que eu entendi quando me descreveram o que acontecia com ela ao tomar os remédios. 

Um ano depois da formatura, na mesma semana da morte da Glória, a Roberta se enforcou em casa. Como chorei aquela noite... chorava por elas, pelas famílias, pelos futuros interrompidos. Chorei pelas falhas e pelas ausências. Pelas lições que aprendi. Chorei pelo riso da Glória e o olhar doce da Roberta.

Triste ver tanta beleza ir embora...


Um mês antes delas, morre minha vó Odila. Já falei sobre isso em um texto que escrevi anos atrás. Ela tinha quase 96 anos e estava sofrendo. A derrocada dela começou dois anos antes, quando sofreu uma queda e quebrou o braço. Foram dois anos difíceis para ela e a única coisa que me perguntava era quando que aquele sofrimento iria acabar.

Os filhos e outros netos ainda achavam que ela milagrosamente iria melhorar e ficar mais forte do que nunca, mas não deu. Ela se foi no começo de 2006 e eu confesso que fiquei muito aliviada por ela. Não chorei. Não havia o que lamentar, apenas respirar. Minha mãe ficou ressentida comigo, por não ter chorado, mas uma vida como a dela, com as coisas que ela viu e fez, não é algo que deva ser lamentado. Ali o futuro se concretizou. Veio, ficou e passou.

Ela ultrapassou o futuro.


Dez anos mais tarde minha outra avó morreu. Morreu dormindo, enquanto tirava um cochilo de manhã, no mesmo dia em que fiz a minha cirurgia do joelho. Na época eu namorava o cara que agora é meu marido. Ele me ligou e perguntou como estava - se estava nervosa, com medo, apreensiva da cirurgia. Disse que estava bem e que minha avó havia morrido. Ele ficou de cara: "Nossa! Você está bem?". Estava tudo bem. Ele ficou perplexo, achou que era frieza, mas não era.

Era mais um vez o futuro concretizado. O resultado das escolhas de toda uma vida ali, expresso em um "tá tudo bem" tranquilo e aliviado.

Quem não a conheceu como nós a conhecemos irá dizer "coitada...". Quem acha que a conheceu irá dizer "tadinha...". Quem a conheceu de fato só poderá dizer uma coisa:

"Foi tarde".


Neste último sábado fomos para a cidade em que meus pais viviam buscar uma grande quantidade de coisas separadas e que decidimos doar para um asilo. Fazia um mês e meio que meus pais haviam morrido, vítima da COVID19. A última vez que os vi foi no enterro: minha mãe se foi no dia 12 e meu pai, no dia 21. No dia sete ela internou e eu fique de acompanhante com ela no quarto. Pensei que poderia trabalhar lá do hospital, mas após o diagnóstico de COVID19 ser confirmado, não dava mais para não dar atenção total para ela.

Pois aquele diagnóstico foi o dobre da morte para minha mãe. Ela se entregou ali.

É horrível ver isso: ver a esperança ir embora e entender que aqueles olhos agora só suplicam para que tudo acabe logo - e para sempre.

Ela se foi na sexta-feira e tive a cruel tarefa de falar para meu pai que a esposa havia morrido. Foi a única vez que ouvi meu pai chorar. Chorava por ele e com ele. 

Como aquilo foi cruel...

No sábado nós a enterramos. Minhas tias foram ao cemitério, mas nem chegaram perto. "Somos do grupo de risco", disseram de longe.

À noite, meu pai e eu conversamos. Ele tomou sopa e disse que a dias não comia algo com tanto apetite. Conversava comigo e parava no meio da frase, pois a frase havia ido embora. Foi naquela noite que eu fiquei sabendo de muita coisa sobre a minha família. Como se a morte da minha mãe desobrigasse meu pai a guardar qualquer segredo ou impressão sobre tudo e todos - inclusive sobre si.

Ficamos até de madrugada conversando. Porém ele estava cansado, muito cansado...

No dia seguinte o cansaço não melhorou. Perguntava se estava tudo bem e, depois de muita insistência, ele falou que mentiu: teve febre e dor de garganta nos últimos dias (mas não queria ir ao médico). À noite meu irmão chegaria e eu iria embora. Ele comeu mais um pouco de sopa, mas agora o apetite diminuiu. Deixei meu pai no domingo, para descobrir que, na segunda-feira, ele estava com a saturação muito baixa. Mesmo assim, ele não queria ir ao pronto atendimento ser atendido. 

Surtei com ele no telefone. Não estava pronta para enfrentar tudo aquilo de novo. Meu irmão conseguiu trazê-lo, mas já era tarde: na quarta-feira ele foi intubado e ele morreu no domingo.

Minha última conversa com ele foi pelo whatsapp e foi um longo monólogo sobre todas as coisas que eu deveria tomar conta quando ele ficasse inconsciente.

Na segunda, chegamos no cemitério e o enterramos. Era inacreditável e totalmente bizarro o que estava acontecendo. Um mês e meio depois, neste fatídico final de semana, fui ao cemitério visitar os túmulos deles pela primeira vez. Aos pés da lápide dela, eu só me perguntava "por que você desistiu? por que?".

Na dele, perguntava "por que você quis bancar o forte?".

E chorava. Chorava de soluçar.

Nessa véspera do dia das mães, a única coisa que fazia sentido é que nada impede o tempo de passar por nós. E que nem sempre a recíproca é verdadeira...


Agora, sou eu que encaro o tempo... E pela primeira vez, sinto que ele me encara também.


Ribeirão Preto, 10 de maio de 2021.




12 de abr. de 2021

LEGIÃO

 Meu caro, minha cara.


"E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E lhe respondeu, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos."

(Marcos, 5-9)


Ainda me perguntam como me sinto, como se existisse um cardápio de sentimentos e eu só pudesse apontar o dedo e escolher. Como se fosse o obrigada a dissecá-los como um rato de laboratório, exposto na bancada do altar das aparências.


Como se as coisas que eu sinto tivessem nome.


Se pudesse, nomearia meus sentimentos de Legião, pois também são muitos. E me perturbam ao mais leve toque de desequilíbrio.


Pois o que eu sinto é o Espanto. O que arregala os olhos. O que prende a respiração. O que balança a cabeça em sinal de negação.


Pois dentre as coisas que sinto, há a Tristeza. A Raiva. A Saudade. E o Alívio. E muitos mais, ainda sem nome. Mas todos meus. A Legião do inevitável sentimento sem nome.


Mas não são demônios. Definitivamente, não são demônios.


Ribeirão Preto, 12 de abril de 2021.




21 de mar. de 2021

COMO SEMPRE E PARA SEMPRE

Meu caro, minha cara.


Entre condolências de parentes e amigos, recebo um texto que continha a expressão do título: "agora eles estão juntos, como sempre e para sempre". Não poderia estar mais correto.


Foram cinco dias com ela e, ao ir embora do hospital naquela sexta, eu realmente acreditei que a veria de novo. Mas ela resolveu ir embora e só voltei a vê-la dentro de um caixão lacrado.


Ter que dar a notícia a ele pelo telefone naquela sexta feira foi a pior coisa que já fiz na vida. Escolher o caixão e as flores também foi horrível.


Ver e ouvir meu pai chorando... "Ela era muito linda", ele dizia. "Ela era muito linda...".


Era mesmo...


Depois, veio a noite. Fiz uma sopa e pude conversar com ele. Ficou claro que a época mais feliz da nossa família era a mesma para nós dois. Na primeira vez naquela semana ele comeu e dormiu. Só dormi depois de ter certeza que ele conseguiu descansar.


Como é triste constatar isso...


No dia seguinte fui embora, sob o risco de também estar doente. Em seguida ele precisou ser internado. Dois dias depois, foi para a UTI. Intubação, hemodiálise, boletins diários para todos na família.


Na madrugada de hoje, a espera terminou. A família diminuiu e cada voto de força é tão vazio quanto possível. "Não imagino o que você deve estar sentindo", é o que falam.


Eu também não consigo.


Na falta de imaginação, penso no passado, na época feliz que concordamos.


"Agora eles estão juntos, como sempre e para sempre".


"Agora eles estão juntos"...


Ribeirão Preto, 21 de março de 2021




12 de mar. de 2021

A LONGA NOITE...

 Meu caro, minha cara.


Foi com ar de graça, com tom jocoso, que eu falei para minha mãe: "Eita! Deu positivo!".


Ela, deitada na maca dentro do quarto a uns 4 metros de distância de mim, murchou na hora.


Naquele momento eu não sabia, mas ela perdeu a guerra alí.


(...)


Quem me conhece intimamente sabe o que tínhamos. Não era uma relação ideal. Dava raiva, medo, culpa. Alí no fundo dava tristeza e amor e um "saudades do que a gente ainda não viveu". Não era perfeito. Nada era perfeito. Mas era o que tínhamos.


Daquele momento da notícia até hoje pela manhã, a queda foi muito brusca. Foram experiências violentas, amedrontadoras. Tristes. Muito tristes...


Ao me despedir dela no hospital, procurei ser otimista: "Percebi que você tomou esse resultado como uma sentença, não como um estado. Não se preocupem com a gente. Se preocupe em sair daqui".


Esqueci de falar "sair daqui com vida".


Cheguei em casa e dormi. Acordei com o telefonema da assistente social pedindo que eu fosse ao hospital. "Quando assistente social liga para parente avisando que médico quer conversar, não é boa coisa", falei para meu marido.


E não era. Depois de duas paradas cardíacas, ela veio a falecer.


Ela desistiu.


Que ela esteja no céu que ela tanto acreditou, ao lado do Deus que ela tanto chamou em oração.


Para mim... Agora ela dorme um sono sem frio, sem dor, sem acompanhante.


Agora ela dorme. Agora, ela dorme...


Ribeirão Preto, 12 de março de 2021.




1 de mar. de 2021

O PEDRISCO DE MARGOT

 Meu caro, minha cara.


A Margot chegou na sexta e hoje ela encontrou um pedrisco na varanda.


Pedaço pequenininho do reboco que caiu da parede quando instalaram a rede de proteção.


Tive que parar de trabalhar à tarde para ver a alegria de Margot com seu pedrisco, feito bola mas mãos de criança.


Na verdade, ela é criança.


Depois, soneca sobre meu ganha pão.


Que eu tenha a sorte de Margot em encontrar pedriscos pelo mundo, sempre e em todo lugar.


Ribeirão Preto, 1 de março de 2021




27 de jan. de 2021

O MELHOR SOM DO MUNDO

 Meu caro, minha cara.


Aqui, entre o gato e o vento.


O chão frio e a nuvem.


A luz apagada e o raio.


Começa a chover.


O gato foge.


O vento aumenta.


O suspiro sai.


E o escuro fica.


(...)


...ah... como é bom poder ouvir ela cair...


Ribeirão Preto, 27 de janeiro de 2021.




24 de jan. de 2021

PLANO DIRETOR

 Meu caro, minha cara.


Os sonhos vão ficando cada vez mais intensos, tanto em frequência quanto em detalhes.


O de ontem foi assim:


Sonhei que caminhava pelas ruas de um bairro, cuja avenida principal já havia sido palco de outros sonhos. 


Procurava por um novo lugar para morar.


Nas ruas próximas à avenida, um rapaz me falou: "olha, alí há apartamentos para alugar". Fui ver onde ficava a entrada e vi que ela se confundia com a de um parque cheio de fontes e piscinas.


Dei a volta e, antes que me desse conta, já estava em um dos prédios do conjunto, com uma chave na mão, tentando a sorte em um dos apartamentos indicados como vazios.


Mas aquele não estava.


Aquela não era a entrada principal, mas a de serviço. Um apartamento sujo, pouco iluminado, com diferentes níveis e - pasmada - vi que todos os cômodos eram dispostos como braços de uma espiral. Embora ele estivesse ocupado, não haviam moradores ali - haviam invasores. Gente pobre, produzindo algo ilegal, a mando de gente maldosa, ostentando uma vida impossível.


A partir de então o sonho foi um absurdo atrás do outro, uma angústia atrás da outra, até o momento do "basta", marcado por grande violência.


Consegui sair. Alí não haveria lar algum.


Consegui uma casa, distante dali, numa rua tranquila. Casa simples, mas era minha. Até que o festival de absurdos volta até tudo seguir para uma grande violência novamente.


Desta vez, fiquei sem casa e não consegui achar saída dessa cidade cheia de enigmas, que eu só acesso quando durmo.


(...)


Nesta cidade, já vi guerras, feras soltas, levas de pessoas doentes, abrigos pobres e frágeis e inacabados. 


Quem desenhou essa cidade o fez de um jeito que, dela, eu não sobreviveria.


Ribeirão Preto, 23 de janeiro de 2021.




5 de jan. de 2021

ATLAS

 Meu caro, minha cara.


Atlas devorou o mundo, mas não teve estômago para digeri-lo.


Antes, quando o carregava nas costas, poderia arremessa-lo longe quando considerasse que sustentar aquilo era uma perda de tempo sem tamanho.


Só que agora, com o mundo e suas mundices nas tripas, se derrama vegetativo e preguiçoso, achando que o ventre é de aço, assim como eram os seus braços e pernas.


Atlas devorou o mundo pois queria o mundo para si. Mas não há estômago nesse mundo capaz de digerir o que o mundo contém.


Então, Atlas morre aos poucos, sorumbático e ruminante, gemendo pelos braços e pernas que antes tinham serventia, mas não mais.


Condenado pelo Tempo a suportar o globo, condenado por si próprio a não suportar mais nada...


Atlas devorou o mundo. Agora morre aos poucos, atrofiando tudo.


Ribeirão Preto, 05 de janeiro de 2021.




Gilbert Chesterton