31 de mar. de 2020

ANTES TARDE...


Meu caro, minha cara.

Tarde da noite me pego pensando no que falta para agir em proveito próprio.

Entre devaneios, lembro da mulher de Ló.

E é assim, como "mulher de Ló" que a mulher de Ló é conhecida. Sem nome próprio, sem biografia, sem nada.

Pois ela é a pessoa que, na fuga de Sodoma, olhou para trás para ver a destruição da cidade ao longe e, por isso, virou uma estátua de sal.

Quando ela me foi contada, as freiras me disseram que o fato dela ter virado seu rosto para a destruição de Sodoma é representado como um ato de olhar o passado sem Deus e também como um ato de saudades.

Para alguém que não tem biografia, isso é uma inferência muito séria sobre seu caráter.

Enquanto essas ideias me vêm à cabeça, a enxaqueca volta. Como um alfinete que rompe o tecido para costurá-lo.

Como uma garra que perfura a pele.

Como um badalo que se choca contra os tímpanos.

Sorte que, dessa vez, tenho um pouco do remédio guardado para tomar.

No dia seguinte, ainda com sono, ligo o computador. A dor ainda está aqui, espreitando a próxima oportunidade de atacar.

O que também está aqui é a estátua de sal da mulher de Ló. A sem-nome-mulher-de-Ló. A sem-rosto-mulher-de-Ló.

A sem-história-mulher-de-Ló.

(...)

Olho para frente e só vejo passado... Não é à toa que também estou assim...

Ribeirão Preto, 31 de março de 2020.


22 de mar. de 2020

AS VIAGENS

Meu caro, minha cara.

As últimas duas semanas eu lembrei de viagens que nunca fiz.

Uma delas eu conheci numa palestra do Amir Klink. Ele contou sobre sua travessia entre a África e a América do Sul e como ele e sua equipe quebraram a cabeça para construir um barco bom o suficiente para isso.

Pensaram num "super barco", que resistiria a tudo. Uma armadura flutuante para um humano flutuante.

No fim, decidiram em fazer um barco muito simples, que não evitaria todos os problemas, mas que poderia ser consertado rapidamente e facilmente no meio da viagem.

A outra viagem foi da Chihiro.

(Adoro esse desenho...)

A dela foi para outro plano. Um plano onde os deuses descansam em saunas e os humanos trabalham.

No seu primeiro dia de trabalho, após perder seus pais para a magia e seu nome para Yubaba, Chihiro recebe de Haku um pouco de comida, com um feitiço para que aquele alimento a fizesse recuperar as forças mais rapidamente.

Ao comer, a primeira coisa que ela faz foi chorar. Copiosamente...

...e foi uma menina forte, corajosa e sábia até o fim.

(...)

E assim eu me toquei: não dá para evitar o mal. Dá para se preparar para ele quando vier. Da mesma forma, ser forte não significa ser insensível. Se a força é uma demonstração, devemos demonstrar tudo, não?

Ribeirão Preto, 22 de março de 2020.


20 de mar. de 2020

NEM TANTO...

Meu caro, minha cara.

Vejo o tédio naqueles olhinhos, que ora se fecham buscando o sono, ora se abrem com espanto por culpa de uma borboletinha desavisada.

Escuto sons de bombas, alarmes e explosões saindo do limbo que paira sobre o sofá, comendo as horas e a intimidade.

Sinto meu relógio fazendo tic-tac, com seu pêndulo me levando de um extremo ao outro, entre paciências, ações, decisões definitivas e o benefício da dúvida.

"Nem tanto à terra, nem tanto ao mar", eu repito a mim mesma.

Os opostos se distraem e tenho o suficiente aqui dentro para viver gerações distraída...

Ribeirão Preto, 20 de março de 2020


9 de mar. de 2020

SOCA NO ©*

Meu caro, minha cara.

(Já adianto que não há nada de erótico aqui)

Anos atrás, quando estava no emprego dos sonhos e dando tudo de mim, participei da comissão que organizaria a festa de fim de ano da empresa.

Fiquei cuidando dos sorvetes.

A festa era enorme: literalmente, milhares de pessoas (entre colaboradores e familiares) estavam presentes. Comida e bebida à vontade, muita música e sorteio de prêmios.

O tipo de coisa que dá trabalho, mas é legal de ver quando finalmente acontece.

Ao final da festa, fui junto ao fornecedor dos sorvetes para ver quantos foram consumidos; daí gerariam a nota fiscal e o boleto para pagarmos.

Foi quando um dos trainees chegou.

Bêbado.

Ou quase lá.

Ele pegou um dos vales que já haviam sido contados e jogou em cima da mesa onde estávamos, gritando "me dá um sorvete".

Olhei pra ele e disse que não.

Com raiva, ele berrou: "ah é? Então soca esse sorvete no cú!"

O amigo dele, também trainee, pegou o rapaz e o afastou da mesa, pedindo desculpas em nome do amigo.

Fiquei... Perplexa. Me senti injustiçada. Eu estava fazendo tudo certo ainda sou xingada???

Não era por causa do sorvete em si. Ele valia uns... R$0,80? Não era isso que iria deixar a empresa mais rica ou pobre.

Mas... Pensa comigo: o cara tava num cargo que, por definição, é uma aposta de liderança jovem para o futuro. Além disso, ele estava alocado em uma das áreas operacionais que englobava um setor de auditoria.

Como que alguém que está sendo preparado para ser gestor para uma área que exige eficiência e lisura profissional pode ter uma atitude assim?

(...)

Pouco tempo se passou e, de trainee, o rapaz virou coordenador. Agora, ele tinha equipe e precisava dar o exemplo.

Não sei se foi antes ou depois dessa transição que ele começou a namorar uma moça da própria empresa. Pareciam super apaixonados.

Depois fiquei sabendo que ela saiu da empresa. Pediu demissão. A pedido dele.

A justificativa que ele deu para convencê-la a sair foi: "você é muito linda, aqui tem muito homem safado e eu não quero nenhum marmanjo dando em cima de você. Se precisa de dinheiro, eu te dou. Estamos juntos, afinal".

Ela saiu.

E eles se separaram.

Ela ficou sem o namorado e o emprego.

Ele ficou sem o sorvete e nunca mais conseguiu sustentar um olhar na minha frente.

(...)

Um covarde sempre será um covarde.

Ribeirão Preto, 9 de março de 2020.


3 de mar. de 2020

"DEIXA AS PESSOAS"

Meu caro, minha cara.

Eu tenho certeza que eu já disso isso (mais de) uma vez, mas a gente nunca sabe de onde vai vir aquela frase, aquele conhecimento, que vai ser vir pra gente.

Ou seja: não dá pra ter preconceito nessa vida.

Por isso, conversando com N pessoas diferentes hoje, por N motivos diferentes, eu lembrei do falecido Mc Catra.

como nao gostava das músicas dele,nunca acompanhei nada a que se referia ao cantor.

Mas foi na sua morte que eu fiquei sabendo de uma coisa que ele disse e que, pra mim, fez todo o sentido:

"Deixa os gordo comer, deixa as mina dar, deixa eu ter meus filhos. Deixa as pessoas!"

Eu acredito que eu sou uma pessoa que gosto de ajudar os outros.

Mas, as vezes, ajudar mesmo é deixar as pessoas.

Não abandoná-las.

Só... deixar... em paz...

..e ter paz...

Ribeirão Preto, 03 de março de 2020



AH, CORAÇÃO...

Meu caro, minha cara.

Ah, coração... essa puta barata que teima em ter esperança...

Que teima rir quando dói, que teima sonhar quando cai, que temia, teima, teima...

Teima a cada batida...

Tema de cada batida...

Ribeirão Preto, 03 de março de 2020.