18 de dez. de 2016

OBSERVATÓRIO

Meu caro, minha cara,

      Uma das coisas que eu aprendi a fazer desde que eu era criança era observar. Por meio da observação você consegue entender algumas histórias, você consegue se antecipar, avaliar o caráter ou evitar algo desagradável.
      Isso, como todas as coisas que a gente aprende, tem seu lado bom e seu lado ruim. O lado ruim é a paranóia. Você fica tão preso aos detalhes, tão focado no trivial, que acaba sendo absorvido pelo supérfluo e perde o que é importante.
      Neste caso, o importante é a moderação. Usar o "poder" da observação nos pequenos gestos, naqueles momentos desimportantes, pois quando ninguém está olhando (ou pelo menos assim parece) é que somos nós mesmos. E são esses os momentos em que eu mais gosto de ficar atenta.
      E essa é a parte boa.
      Isso leva prática. E tempo. Como disse logo acima, aprendi isso de criança e não aprendi isso sozinha; foi meu pai quem me ensinou a prestar atenção nas pessoas e a perceber que são nos detalhes que elas se revelam.
      E olha que coisa curiosa: embora eu xingue todos os dias o fato de ter feito Psicologia (profissionalmente eu teria tido muito mais proveito se tivesse feito Administração) esse curso me serviu para treinar meu ouvido e meu olho para perceber e assimilar as coisas que eu percebo de forma diferente.
      De forma mais... real.
      Foi por esse motivo que eu resolvi escrever hoje: por causa de três situações que eu lembrei agora de manhã cedo e que eu só pude percebe-las porque, desde muito cedo, eu aprendi a observar:

***

      No meu último ano de faculdade eu viajei de Assis para Campinas, pois iria encontrar meus pais lá. Como cheguei muito cedo, fiquei sentada, esperando por eles e pelas abertura das lanchonetes da rodoviária velha.
      Há uns 15 metros de onde eu estava, bem na minha frente, abriu a primeira lanchonete. Era um rapaz, na casa dos 35 anos. Ele ligou a cafeteira, limpou o balcão, tirou algumas coisas da geladeira.
      Enquanto isso, foi se aproximando daquela única lanchonete aberta um senhor, catador de material reciclável, arrastando em uma das mãos um saco de ráfia laranja (desses de embalar saca de cebola na feira, conhecem?) com algumas latinhas de alumínio dentro. Além do saco de ráfia, ele tinha um boné preto e uma capa preta de chuva com o dobro do seu tamanho, tão grande que arrastava no chão.
      No saguão da rodoviária velha, só haviam nos 3: o cara da lanchonete, o velho da saca cor de laranja e eu.
      O velho se aproximou do cara da lanchonete e grunhiu. O cara da lanchonete o cumprimentou com um sorriso e fez sinal para ele esperar. Pegou o café recém coado, o leite fervido e pos tudo num copo americano. Quando o velho da saca de ráfia ia pegar o copo, o cara da lanchonete fez sinal com a mão, pedindo para que o outro esperasse. Pegou um saleiro debaixo do balcão e polvilhou por cima do pingado.
      (Algum desavisado vai pensar: "Meu Deus! Ele pôs sal no pingado!?! Não, meus caros, era canela em pó).
      Ambos deram risada: o velho da saca de ráfia grunhiu alto e com ar satisfeito. O cara da lanchonete sorriu com orgulho. O velho da saca de ráfia pegou o açucareiro e tascou açúcar pra dentro do copo. Bebeu seu pingado COM CANELA e foi-se embora sem pagar.
      O cara da lanchonete ficou vendo o velho com a saca de ráfia ir embora, no seu passo curto e lento. Estava satisfeito com o que fez.

***

      Uns 3 meses atrás (ou 4, não me lembro) estava indo para o trabalho de carro. Enquanto aguardava minha vez de entrar numa avenida muito movimentada, vi algo que não se vê com frequência.
      Na parte de fora de uma clínica, uma faxineira fazia seu serviço, limpando a calçada cheia de folhas. Absorta no seu trabalho, nem percebeu que, atrás dela, se aproximava um homem na casa dos seus 40 anos, quase agachado. Ele ia andando pé ante pé, bem devagar, como se não quisesse fazer barulho.
      Quando estava bem perto da faxineira, veio o bote: ele pulou para cima dela, dando um grito e um abraço. A pasta que ele carregava foi para o chão, assim como a vassoura que ela tinha nas mãos que, no susto, voou longe.
      Nesse momento, surgiu uma brecha para eu entrar na avenida, mas como não tinha nenhum carro atrás de mim, eu resolvi ver o restante da cena pelo espelho retrovisor. Faxineira e homem se abraçavam, refeitos da brincadeira de criança.
      Ele ajudou a resgatar a vassoura dela, ela desejou bom trabalho para ele e ambos voltaram a serem "adultos" novamente. Crescer é um conceito tão relativo...

***

      Faz mais de 8 anos que eu trabalhei no banco. Faz mais de 8 anos que eu me mudei para Ribeirão Preto. Faz mais de 8 anos que isso aconteceu.
      Eu estava indo embora para casa, depois de mais de um dia na agência. Naquela época eu ainda não tinha carro, então eu tinha que andar 2 quarteirões até chegar no ponto de ônibus e esperar 1h dentro dele até chegar em casa.
      Numa tarde, enquanto aguardava o circular chegar, uns meninos bricavam na rua. Brincavam de esconde-esconde. Uns ia parar atrás dos carros, subiam em árvores... Eram esconderijos muito óbvios. Nenhum deles podiam se esconder dentro das casas (pois aí seria muita sacanagem). Só sei que era mais uma questão de quem corria primeiro para se salvar, pois achar os colegas era muito fácil.
      Numa das rodadas, o menorzinho da turma veio se esconder perto de onde eu estava. O ponto (que nada mais era que um poste de madeira) ficava em frente à uma garagem, que oferecia um nicho muito pequeno para alguém se esconder. Mas o menorzinho foi para lá, na esperança de que, se se espremece bastante contra o portão, poderia ficar invisível.
      Vendo aquela situação, não resisti: encostei na parede perto do portão da garagem e virei o restante do esconderijo que o menorzinho precisava.
      "3, 2, 1, lá vou eu!". E o primeiro garoto bateu o pic, depois o segundo, o terceiro, e nada de acharam o menorzinho.
      Quando o moleque que estava procura dos escondidos foi para o outro lado da rua, eu dei passagem e o menorzinho saiu correndo para bater o pic. Era o último que faltava. Meu ônibus chegou e eu entrei.
      Nunca mais vi os meninos. O menorzinho nunca me agradeceu a ajuda. Essa foi a última vez que eu brinquei de esconde-esconde.

Ribeirão Preto, 18 de dezembro de 2016



15 de set. de 2016

ENVELOPE VERDE À CAMINHO

Meu caro, minha cara,

      Verde é a cor dos envelopes das cartas que eu mando para a Aline. Faz alguns anos que não mando cartas para ela mas, esta semana, coloquei uma no correio e em breve chegará às mãos de sua verdadeira dona.
      Começamos esse costume ainda na faculdade. Quando me formei, prometemos escrever uma para a outra. E cumprimos essa promessa. Era muito bom esperar pelo carteiro, pois geralmente quando o carteiro chegava, era para deixar contas, malas diretas e, talvez, encomendas.
      É... nessa época, esperar pelo carteiro era uma coisa legal!
      Porém, um dia, ela escreveu e eu não respondi. Não posso dizer ao certo o que me fez não escrever mais. A única coisa que me vem à mente é que essa deve ter sido a época em que comecei a me sentir vazia.
      E pessoas vazias não escrevem cartas...

      Claro que não perdi o contato com a Aline: nós somos amigas no Facebook e temos o contato uma da outra no whatspp, mas não é a mesma coisa. Essa não é uma amizade de redes sociais. Eu não me sinto à vontade de abrir um computador ou celular para falar para ela, em tempo real, as coisas que estão acontecendo comigo.
      Porque essa amizade, esse relacionamento, não é baseado em informativos a cada meia hora. Não é baseado em notícias e prestação de contas. Ele é baseado em sonhos, expectativas, decepções, pequenas (e sensacionais) alegrias, descobertas e, sobretudo, sinceridade. As sensações, sentimentos e percepções são cozidas em fogo lento (ou alto) dentro de nós e desenformadas no papel em forma de frases. Não só as palavras, mas as letras e a pressão da caneta mostram para seu dono o verdadeiro sentido do que estamos discorrendo.
      E quando eu digo "para seu dono" não me refiro a quem escreveu a carta, mas àquele que irá recebê-la.
      Porque... cartas só servem para serem lidas por seus destinatários, nunca por quem escreve.

      Não sei quantas pessoas ainda têm o hábito de escrever cartas. Devem ser poucas, eu acho. Digo isso porque, quando conto a alguém que me correspondo com uma amiga por carta, quem escuta sempre diz: "Nossa! Que legal! Ninguém mais faz isso, né?". As outras respostas mais comuns são: "Nossa! que bacana!" e "Nossa! Mas por que vocês fazem isso?".
      E ouvir isso é tão triste...
      Triste porque escrever uma carta é um ato de revelação. É um momento muito íntimo, pois somos obrigados a pensar no que escrever. Há também momentos em que não se pensa, só se escreve. Nessas ocasiões, há de se ter não só confiança, mas também muita coragem para se deixar registrar para outro alguém.
      Mandar uma carta significa escrever um diário, onde as páginas são guardadas por uma pessoa de muita confiança.
      Talvez seja por isso que há tão pouca gente que não escreve hoje em dia. Não percebo que hoje as pessoas querem que existam provas de seus medos, inseguranças, projetos e confissões.
      Enfim, não sei o quanto as pessoas estão dispostas a fornecer à outrem provas de sua própria humanidade.

      (...)

      Eu não gostaria, com esse texto, de desmerecer nenhum outro relacionamento de amizade que eu tenho. Pois (alerta! alerta! Aviso de frase cafona chegando!) toda amizade é única e cada uma delas merece ser registrada do seu jeito (e, às vezes, esse registro deve ser particular).
      Eu tenho aquela amiga com quem eu gosto de almoçar, aquela com quem eu gosto de beber chá, aquela que o tempo não se transforma em distância e está à distância de um toque. Tenho um amigo que nunca abracei e de quem sinto saudades de conversar, uma amiga que sonha com seu príncipe e aquela que está sofrendo com uma decepção muito grande e que transformou a tristeza em raiva (e não sei o que fazer).
      Tenho uma amiga que eu gosto de olhar, de longe, que sua vida está bem, que é uma vencedora. Uma amiga com quem não tenho mais amizade (mais ainda há muito carinho), e outra que precisa amadurecer para ser protagonista do próprio caminho.
      Há uma que eu só percebi que sentia falta dela quando ela foi embora e outra que me faz passar muita raiva com sua risada. Há aquela que sempre será mãe e àquela que desapareceu.
      Existe aquela que era ranzinza, mas o amor a tornou muito meiga e a outra, que era muito meiga e continuou assim depois que encontrou o amor (aliás, isso aconteceu com com mais de uma pessoa!).

      Todas elas com seus defeitos e desejos, assim como eu.

      Todas elas de quem me distanciei com meu silêncio...

      (...)

      (neste momento, eu escrevo isso como um sussurro...)

      De tão acostumada com o silêncio em que me envolvi, tenho medo de quebrá-lo. Por enquanto, para não feri-lo, vou começar com o barulho do teclado e da caneta numa folha de papel. Deve ser por isso que eu contei sobre as cartas para a Aline. Deve ser por isso que ainda ando tão quieta...

      (e agora, silencio...)

Ribeirão Preto, 15 de setembro de 2016

29 de ago. de 2016

Beatles - In my life


"Apesar de saber que nunca vou perder o afeto Pelas pessoas e coisas que vieram antes
Eu sei que sempre vou parar e pensar neles
Em minha vida, te amarei mais"

22 de ago. de 2016

PLAQUINHA.

Meu caro, minha cara,


Indo para o médico agora à tarde, tive que passar pelo centro da cidade.
Entre um semáforo e outro, lá na Baixada, pude ver a mistura, um ao lado do outro, de botequinhos e portinhas discretas (boa parte delas, prostíbulos).
Entre um e outro vi uma portinha que tinha uma placa sobre ela, de ferro fundido e com jeitão de antiga. Dizia, simplesmente, "Residência Familiar".

Pelo jeito da plaquinha, acima do batente da porta, esta residência familiar deve existir ali há muito tempo. Deve ser do tempo em que ainda haviam outras residências familiares, em um centro de cidade com comércios familiares. As pessoas que ali moravam deviam sair na rua e ver rostos familiares. A rotina deveria lhes ser familiar.

E o tempo deve ter passado (aliás, o tempo passou), o centro da cidade mudou, os vizinhos se mudaram, a vizinhança mudou, mas a residência familiar ficou.

De tão descaracterizada e desarticulada da sua nova realidade, a residência familiar teve que colocar uma plaquinha no batente de sua porta avisando o que era, sob o risco de, por falta de aviso, ser confundida de função com a nova ocupação dos seus vizinhos.
Não sei se fico triste ou feliz em ver aquela placa.
Aquela placa que mostra que as coisas mudam e que há coisas que nunca mudam.
Aquela placa que anuncia o imutável, para o bom e para ruim.
Aquela placa de ferro, com jeito de placa de cemitério, que avisa que ainda há algo vivo. Se não de verdade (vai que aquela residência não seja mais familiar) ao menos na ideia.
...
São momentos fugazes assim que me fazem parar para pensar que algumas idéias devem mudar muito para que permaneçam as mesmas...

Ribeirão Preto, 22 de agosto de 2016.

VAMOS VER...

Meu caro, minha cara,

Hoje de manhã, segundos antes de atravessar a rua para entrar no prédio onde trabalho, havia um cara num carro importado passando na rua naquele momento.

Eu parei no canto da calçada, esperando ele passar para que eu pudesse atravessar. Venho andando bem devagar depois da cirurgia, por causa do joelho e, por causa da dor que venho sentindo na última semana, voltei a usar a bengala.

Enquanto esperava esse cara passar, percebi que ele diminuiu a velocidade e passou muito devagar por mim. Quase parou. Quando percebi, notei que ele estava me olhando, com a cara mais espantada do mundo. Ele me olhava e olhava minha bengala, incrédulo.

Deveria estar pensando que bengala é coisa de velho. Deveria estar pensando que quem é novo não se machuca e não tem problemas de mobilidade.

Deveria achar que uma pessoa com algum problema de mobilidade ou é um pobre ferrado, que tem que explorar sua desgraça para conseguir alguma graça dos outros, ou então deve ser alguma personagem rica de novela global, que infortunadamente sofreu um acidente e sofre sua desgraça, enquanto tem todo o apoio que o dinheiro pode dar.

Não sou nem uma coisa, nem outra. Até onde sei, meu estado é temporário. Demorará para sarar, mas acredito que ficarei bem.

O que o espanto do motorista de hoje me lembrou vai muito além do que possa ter passado pela imaginação dele.

Me lembrou de que tudo tem limite.

Que é escolha nossa fazer o que der pra fazer dentro desse limite.

Que as vezes a gente escolhe ficar cansado, porque ficar sempre com "pensamento positivo" cansa.

Que a gente tem o direito de ficar cansado.

E que tem o direito de descansar.

Me lembrou que as coisas acontecem com qualquer pessoa, incluindo nós próprios.

E que há coisas que podemos decidir, mas outras, não.

Que decisões tomadas 10, 15, 20 anos antes podem ter consequências agora.

E que não dá pra ficar se culpando pelo que fez e pelo que não fez no passado, não importando se esse passado foi hoje de manhã ou 30 anos atrás.

Me lembrou que as coisas mudam.

As perspectivas mudam.

As opiniões mudam

As prioridades mudam.

Que a gente muda.

E que tá tudo bem. Isso acontece.

E vai doer.

E vai incomodar.

E a gente vai sofrer um pouquinho.

Ou um poucão.

Mas vai passar (assim a gente espera).

E que a gente vai sair melhor do que entrou (assim a gente espera também).

Fiquei muito incomodada com a forma como esse cara me olhou, mas tenho que agradece-lo por ter feito isso. Pois foi esse olhar, hoje, que me fez lembrar tudo isso.

A gente passa tanto tempo prestando atenção no que está fora de nós que, quando alguém ou algo te motiva a prestar atenção no que está por dentro, a gente tem que agradecer (mesmo que seja desagradável).

Hoje eu consegui esse momento. Esperarei ansiosa e atenta pelo próximo.

Vamos ver...

Ribeirão Preto, 12 de agosto de 2016.

23 de jul. de 2016

6 de jun. de 2016

Aurora - Nature Boy


"A única e maior coisa que você irá aprender
É simplesmente amar e ser amado em troca"

23 de abr. de 2016

9 de mar. de 2016

ADOLETÁ

Meu caro, minha cara,

      Uma noite, saindo da fisioterapia, com a cabeça triste e o coração cansado, vi um homem do lado de fora da sala de espera brincando com seu filho.
      O menino não tinha mais do que 5 ou 6 anos, O que me chamou a atenção nessa cena foi a brincadeira entre os dois. Não era brincadeira de luta ou joguinho no celular. Estavam brincando de Adoletá.
      Para quem não conhece, é uma brincadeira de roda que muitos falariam que é "coisa de menina". E não parou por aqui o meu interesse pela cena. Além deles estarem brincando de "brincadeira de menina", os dois estavam gostando! O filho provavelmente aprendeu no colégio com outras crianças e gostou da brincadeira. O pai estava maravilhado com a alegria do filho em poder "ensinar" para ele uma brincadeira "inédita".
      Passei rapidamente pelos dois, pois queria muito ir embora para casa, mas aquela cena ficou comigo (e desconfio que ficará para sempre). E vou dizer o porque.
      A impressão que aquele pai me passou é de que ele não queria ensinar o filho a ser homem, fazendo "coisas de homem", brincando "brincadeiras de homem". A sensação que tive é de que ele queria ensinar o filho a ser feliz. 
      Ao sentir e demonstrar prazer em algo que a cultura geral nos diz que não é "condizente" com nosso gênero, a gente descomplica um pouco a vida. Crianças têm direito de brincar com o que quiserem. Nós, "adultos", também deveríamos usufruir desse direito - mas o tempo passa, a gente cresce e isso não acontece.
      Uma pena, não?
      Imagino quantas pessoas (em várias gerações) não receberam em sua educação essa divisão de "coisas de menino" e "coisas de menina". Eu acho que separar as brincadeiras, as emoções, a postura e a conduta do que um ou outro deve ter nos deixa tão pobres, tão limitados em nossas possibilidades. Como se uma coisa que poderia ser minha me fosse proibida só por causa da minha anatomia. Para mim, essa divisão que tantos acham de "inocente" é a gênese de tantos problemas as relações de poder entre os gêneros.
      Não tenho a pretensão de discorrer mais sobre o tema. Um motivo é que ele é extenso e confesso que não sou uma expert no assunto. O outro (e mais forte) é que queria contar o que vi e falar sobre as impressões que tive: vi uma pessoa incentivando outra a ser feliz, sem amarras, sem filtros. Uma criança exercendo seu direito de ser criança e um adulto exercendo seu dever em garantir, preservar e participar disso tudo.

      Para terminar, deixo aqui o link de alguns vídeos que assisti a pouco. Não falam sobre crianças, mas falam sobre direitos, deveres e empatia. Acho importante a gente ser sempre lembrado do que realmente vale a pena. Pelo menos, eu acho que vale.

https://www.facebook.com/tudosobreminhamae/videos/754864831316518/

https://www.facebook.com/NaoKahlo/videos/572352069605130/

https://www.facebook.com/gobmx/videos/775837832546569/

2 de mar. de 2016

1KM/H

Meu caro, minha cara,

Não sei bem como começar hoje. Tenho um desejo muito grande de colocar para fora algo que venho notando a muito tempo, mas ainda não está algo totalmente formatado. Por isso, mesmo não havendo nenhuma elegância nas frases iniciais, começarei a escrever assim mesmo, pois a minha esperança é que em algum momento tudo isso faça um pouco de sentido para mim e para você.

Uns meses atrás eu machuquei o meu joelho. E quando digo “machuquei” eu quero dizer que eu “machuquei mesmo”. Fazia faxina em casa e quando fui pegar uma coisa no chão, senti uma dor absurda no meu joelho, que me fez rolar de tanta dor. Não caí, não bati, não escorreguei. Apenas me agachei e a dor veio.

O resumo dessa história é que eu fui ao médico, fiz exames, tive que fazer cirurgia e agora estou em recuperação. Meu joelho ainda dói e ontem tive a notícia que a tendência é que ele continue doendo, pois além do menisco rompido, eu lesionei a cartilagem. E cartilagem praticamente é algo que não regenera.

Mas o que eu quero falar não é sobre a dor, a cirurgia ou a recuperação. Da recuperação, talvez, mas não necessariamente sobre ela. Eu quero falar sobre o que eu tive que fazer desde que tudo isso começou.

Eu sempre fui acelerada. Não quero dizer que eu seja uma pessoa ágil, mas o meu grau de ansiedade sempre me deixou com vontade de estar anos-luz à frente do que vivia. Essa impaciência era quase que vomitada sobre mim e as pessoas com que convivo, principalmente aquelas com quem trabalho. Sempre preocupada com o próximo passo, nunca interessada no movimento feito no agora. Essa era eu (ou sou eu, tenho medo de ser tão otimista assim).

Entretanto, com a dor, tudo mudou.

Ela me fez ficar mais lenta. No sentido literal da palavra. Minhas passadas ficaram mais curtas, tive que começar a pensar sobre qual o melhor lugar para colocar o pé, como subir ou descer uma rampa com segurança e sem forçar muito a minha perna. Ao final, para conseguir andar sem me machucar mais ainda, tive que apelar para uma bengala.

Devido ao meu caminhar mais lento, eu tive que começar a fazer duas coisas: 1) a compreender que a minha lentidão era temporária e necessária naquele momento, pois não conseguiria andar de um jeito “normal” sem me ferir mais e 2) a observar mais as coisas que estavam ao meu redor. Andar no modo “câmera lenta” e prestar atenção aonde pisava passaram a ser coisas naturais. Sendo assim, também passou a ser natural olhar as coisas que estavam ao meu redor.

E que descoberta mágica foi isso: comecei a ver mais a atitude dos motoristas na rua, o quanto uns são mal-educados, outros desconhecem que existem outras pessoas fora do seu carro e ainda aqueles que são compreensivos e te ajudam a atravessar a rua (parando todo o trânsito que está atrás deles).

Sei que qualquer pessoa que ler isso irá achar que eu não falei mais do que o óbvio e que eu não deveria me espantar assim, mas a respeito disso eu digo: você não tem noção do quanto as pessoas são esquizofrênicas no trânsito até você ter uma dificuldade de locomoção e se ver à mercê desse tipo de gente numa situação assim.

Outra coisa que pude perceber é a própria via pública: como as calçadas e canteiros podem ser verdadeiras armadilhas, mas também esconder muitas coisas legais. Lembro de um dia quando chegava ao trabalho e estava tão ensolarado que parei por uns 10 segundos no meio da calçada, só para registrar bem na mente quão bonito foi ver o sol entre as ramagens das árvores balançando ao vento. Até tentei tirar uma foto, mas desisti quando percebi que foto alguma seria tão bonita como essa lembrança.

Outra coisa que também me lembro foi de um dia de chuva. Voltava para o carro em meio ao canteiro central da avenida, prestando atenção para não tropeçar em nada, quando vi um caramujo comendo biscoito de morango. Eu confesso que parei e fiquei ali também durante um tempinho, na chuva, vendo aquele bichinho relativamente nojento comendo um biscoito abandonado no chão. Eu aposto que, na sua lentidão, ele deve ter comido o biscoito todinho.

Passei também a reparar nas pessoas na rua e nos outros locais. Uns não estão nem aí se você tem ou não alguma dificuldade. Outros são gentis, outros ainda se assustam: perdem o fôlego, dão um pulinho para trás, como se pedissem desculpas por não terem qualquer problema ortopédico e eu sim. E olhe que o meu é temporário! Imagino como deve ser chato para portadores de necessidades especiais ter que lidar com esse tipo de assombro dia após dia.

Da mesma maneira que eu tive a oportunidade de ter que aproveitar melhor meu tempo para observar as coisas que aconteciam fora de mim, passei a aproveitar meu tempo para olhar mais para dentro.

Eu não poderia mais me cobrar da forma como me cobrava antes. Com dor e mais lenta fisicamente, como eu poderia “correr” atrás das minhas coisas? Impossível: ou eu colocava um pé no freio, ou eu iria me estrepar. Tive que me tornar mais tolerante comigo, aceitar que haviam coisas que eu não conseguiria fazer sozinha, ou simplesmente que haviam coisas que eu não conseguiria fazer de forma alguma. Por isso, tive que começar a pedir ajuda para as pessoas.

Quem me conhece de verdade sabe o quanto isso é difícil para mim. Não tenho medo de incomodar ninguém. Tenho medo de deixar algo na mão de alguém e esse alguém não dar conta do recado, não fazer o que deve, não fazer bem feito, não fazer dentro do prazo correto. Esse joelho machucado me obrigou a ter que deixar algumas coisas em mãos alheias e só torcer para que desse tudo certo.

No mesmo bonde do “tenho que ser mais compreensiva comigo”, tive que passar a ser mais compreensiva com os outros. Em certa medida, eu passei a depender mais de outras pessoas e por isso, antes de mais nada, eu tinha (e tenho) que demonstrar gratidão. E ter que ser grata com alguém que você não confia na capacidade de fazer algo não é fácil (essencialmente no trabalho). A única maneira disso acontecer é você abandonar o seu trono de cristal imaculado, vir para a vida real e chegar à conclusão que aquela pessoa pode não fazer tão bem quanto você, mas está se esforçando para fazer da melhor forma possível. Ao fazer isso eu me espantei: o mundo não ruiu, ninguém morreu e todo mundo continuou fazendo o que deveria fazer.

Além de tudo isso, aconteceu mais uma coisa: eu passei a olhar mais para as pessoas e me colocar no lugar delas. Não quero dizer com isso que meu coração está tão cheio de amor e caridade quanto o da Irmã Dulce, mas a minha noção de “dificuldade” e de “frescura” mudou. O que também passei a enxergar é que a dificuldade de uma pessoa é a dificuldade dela. A minha pode ser diferente e ao invés de julgá-la sobre o que ela não consegue fazer, eu tenho que olhar o que ela consegue dar conta e o que eu conseguiria fazê-la entender.

Pena que eu tenho consciência disso, mas não tenho energia... E vou ter que ser tolerante comigo mesma sobre esse assunto.

O que eu quero dizer contando tudo isso é que, tirando a dor e a dificuldade de locomoção (que aos poucos vai passando, com a fisioterapia), machucar meu joelho naquele dia não foi de todo ruim. Posso até dizer que fez bem para mim, pois me abriu um novo ponto de perspectiva. E quando isso acontece, é melhor aproveitar, pois seu olhar nunca mais será o mesmo para o mundo.

Não quero deixar aqui qualquer insinuação de que estou uma pessoa mais plena, melhor, mudada, nada disso! Continuo ranzinza, depressiva e desconfiada como sempre. A única diferença é que agora estou mais cansada, mais lenta, porém mais observadora, falando mais baixo e escutando mais. Não posso mais me dar ao luxo de me envolver em uma briga de egos ou de “territórios”, pois essas “brigas” não existem na realidade: são apenas distrações em um mundo que precisa muito menos de nós do que nós dele. O que mudou é que agora eu me permito ter alguns luxos, como olhar uma luz bonita, aceitar um gesto de carinho ou observar um caramujo comer. Não estou mais sozinha. Há um mundo ao redor de mim. E devo senti-lo e aproveitá-lo, com todas as suas dores, frustrações, carinhos e lições.

Ribeirão Preto, 2 de março de 2016

12 de jan. de 2016