30 de ago. de 2020

MARÉ NADA

Meu caro, minha cara.


O solitário ipê amarelo se ergue sobre o campo forrado de palha. Vejo isso enquanto o sol bate no meu capacete e o vento tenta destruir a minha trança. 

Os tucanos voam longe dos gaviões e urubus, mas cavalos e burros dividem as poucas sombras no pasto como iguais.

As vacas passeiam vagarosas por entre as palmeiras de buriti, naquela fazenda com a casa grande, os currais e as casas de colônia destelhadas.

Chegamos cansados na cidade que todos dizem ser "uma beleza", mas ao final do caminho, não queríamos beleza: queríamos sombra, comida, descanso.

Não tinha nada disso que prestasse.

Perto do anfiteatro, paramos numa sombra pequena, enquanto via os cardumes de peixes passeando na praia interditada. Por um momento, pensei que as pedras aparentes estavam assim por causa da maré baixa, mas numa represa não existe maré baixa ou alta. Também não tem onda. Aliás, elas só se formam quando alguma lancha passa. Aí até dá pra sonhar com ondas quebrando na praia.

"Não gosto desse barulho".

"Que barulho?"

"Esse aí, de onda quebrando. Prefiro lago, lagoa, represa, com água calminha, para entrar e se refrescar, andar de caiaque sem medo de levar caldo".

"Ah... Eu já gosto é do mar. Esse barulho de onda quebrando é lindo! Fora o cheiro... Eu tenho saudades do cheiro".

Concordamos em discordar. Eu acho graça. Não precisamos concordar com tudo para nos darmos bem. E tá tudo bem.

Porém, estaria muito melhor se a água fosse salgada, o cheiro fosse de maresia e houvesse maré...


Rifaina, 30 de agosto de 2020.



26 de ago. de 2020

"PROMETO ORGASMO!"

 Meu caro, minha cara.


Partindo do princípio que estou numa fase saudosista e intimista, me pego pensando no passado e me deparo com a seguinte situação.


Era 1998 e eu tinha 16 ou 17 anos. Estava no laboratório de eletrônica do colégio e, na minha bancada, estava a minha melhor amiga e o cara que viria a ser seu marido. Na bancada atrás da gente tinha o cara que me deu meu apelido, o cara que faz aniversário no mesmo dia que eu e o cara que fritou o cérebro de tanto cheirar cola.


Pois bem: a aula estava um saco e um milagre estava sendo operado alí, porque eu estava conseguindo fazer os exercícios junto com o povo. Terminamos os exercícios com os resistores e ficamos conversando os seis. 


Papo vai, papo vem e, como todo bom grupo de adolescentes à toa, o assunto descambou para sexo. 


Na época, tanto a minha amiga quanto eu éramos virgens, e a gente tinha a ideia que a nossa primeira vez seria uma coisa legal, com alguém que a gente gostasse, etc. Sabendo disso, os meninos (o que faz aniversário junto comigo e o que fritou o próprio cérebro) começaram a usar todas as cantadas idiotas que os homens dão para "se dar bem" com a gente.


"Prometo ser carinhoso..."

"Vou com cuidado..."

"Se quiser vai ser só a cabecinha..."


E rimos à larga!


Até que chegou o momento em que não haviam mais "argumentos" a serem dados. Foi nessa hora que o cara que fritou o cérebro praticamente gritou:


"PROMETO ORGASMO!"


Aí o negócio desandou de vez: o cara que faz aniversário junto comigo protestou, dizendo que é impossível, pois a mulher tem que conhecer o próprio corpo, que tem que fazer de um jeito XYZ para não traumatizar, porque "teve uma vez que eu peguei uma garota..."


Já o cara que fritou o próprio cérebro disse que "sempre conseguiu satisfazer todas as mulheres que estiveram com ele", e a tréplica já foi logo um "orgasmo fingido não vale" e o nível só desceu mais e mais.


Minha melhor amiga, o cara que viria a ser marido dela, o cara que me deu meu apelido e eu ríamos do absurdo daquela cena.


Hoje, pensando nela com a distância do tempo, da experiência e da memória, eu penso que meu riso não era só porque essa foi uma história engraçada, mas porque foi a primeira vez que eu pensei que alguém de carne e osso poderia compartilhar um momento tão importante quanto a descoberta da própria sexualidade.


Na época eu não entendia o que eu entendo agora.


Porém, quando chegou o momento, eu fugi e não vivi isso com alguém realmente especial...


Ribeirão Preto, 26 de agosto de 2020.


16 de ago. de 2020

O PÁSSARO DESCONHECIDO

 Meu caro, minha cara.


Este mês eu fiz a minha primeira aplicação com foco na minha aposentadoria. Também conversei com uma amiga sobre o papel da arte no autodescobrimento e ouvi um podcast sobre os efeitos da explosão do Cracatoa no mundo. E hoje eu fiquei assistindo vídeos sobre finanças e lendo artigos em jornais.


Enquanto lia um sobre autocompaixão no quarto cheio de penumbra e ar frio, eu percebo que há um piado do lado de fora.


É um belo canto, que infelizmente parou por causa de um gavião que grasnou aqui perto.


(...)


(Agora que o gavião passou, o piado bonito voltou, mas muito tímido)


(...)


Obrigada pelo piado, pássaro. Você me lembrou que a produção humana não é a única produção que vale nesse mundo...


Ribeirão Preto, 16 de agosto de 2020.



1 de ago. de 2020

AS BELEZAS

Meu caro, minha cara.

Uma das coisas que mais me chamou a atenção quando conheci o Congresso Nacional foi a parede de azulejos de Athos Bulcão que fica entre o Salão Verde e Azul.

O painel é composto por três padrões de azulejo. Mais nada. Simples assim. Colocados ao acaso, sem ter lado de cima ou de baixo, direita ou esquerda. O resultado daquele caos é belo e natural. Se fosse planejado, seria chato.

Pensava, maravilhada, como ele teve essa ideia inédita...

Muito tempo depois, num documentário sobre pássaros, estudiosos revelaram o que descobriram sobre a revoada de algumas espécies. Vocês sabem do que estou falando... Aquela revoada mágica, randômica e perfeita. Aquele balé aéreo e perfeitamente coordenado pelo acaso.

O que eles descobriram? Três regras básicas de orientação, de acordo com o movimento dos seis indivíduos mais próximos. E é isso que define o movimento de centenas de pássaros: três regras básicas.

Daí eu percebi que a ideia de Athos não era inédita. É uma regra natural, caótica, simples.

Deve ser por isso que eu acho beleza nesses três lugares: em lugares naturais, em lugares simples e em lugares caóticos.

Lugares produzidos pela natureza do mundo e pela natureza dos homens.

Para o bem e para o mal.

Ribeirão Preto, 01 de agosto de 2020.