28 de set. de 2020

BOA NOITE, TEMPESTADE

 Meu caro, minha cara.


Apareceu do nada na minha frente. "Tenho sede". Desço da esteira e ele vai, com copo na mão, até o bebedouro.


Um, dois, sei lá quantos copos depois, ele volta com um copo cheio para mim.


"Vamos dar uma volta hoje?"


Eu disse que sim. O shampoo, a camisola e o jejum intermitente que esperassem: hoje a noite é de chuva.


Pegamos os capacetes e fomos. Eu, sonhando acordada. Ele, vivendo o sonho de metal do Vital. Em comum, amamos a chuva, o vento, o raio e o trovão. Esses deuses antigos que teimam em não serem domesticados pela mão inepta de quem mal vive um século.


Ganhamos a estrada e, com ela, as cenas mais lindas: relâmpagos disfarçados pela chuva distante eram apenas luzes aconchegantes e sedutoras. Caiam no chão, como a chuva. Caiam de um lado ao outro, como o vento.


Com poucos carros e caminhões na estrada, ganhamos velocidade. Pensamos sentir os primeiros respingos da chuva. 


E sorrimos dentro de nossos corpos...


A noite continua, assim como os trovões. E lá fomos nós, noite adentro, caçar mais raios pelo céu, como crianças caçando vagalumes no quintal...


Ribeirão Preto, 28 de setembro de 2020.




19 de set. de 2020

O SONHO DA TORRE

 Meu caro, minha cara.


Percebi que meus sonhos ficaram mais ricos depois que a medicação da enxaqueca foi acertada.


Mais ricos e repetitivos.


Em um deles, sonho com a seguinte história: uma moça, já adulta (e, não me pergunte por quê, mas ela era a cara da Milla Jovovich no primeiro Residente Evil), me contava como a mãe dela morreu. 


E, como falei antes, esse é um dos sonhos que vêm se repetindo.


Ela me chama por um jardim gramado e só paramos de andar quando chegamos ao lado de uma torre de um convento. Ela aponta para a terceira janela da torre e diz "minha mãe caiu dali quando tinha quatro anos".


Diz da mesma forma que uma pessoa diz as horas.


Ela continua contando: "quando era pequena, eu vi essa torre e queria subir. Como ela é de tijolinhos, para mim foi como uma pequena escada. Minha mãe me viu e começou a gritar, desesperada. Na época eu não sabia porquê do desespero dela. Então, como eu não descia, ela subiu. Quando chegou na terceira janela mais alta, ela perdeu o equilíbrio e caiu. Morreu na hora."


Falava como se tivesse perdido um cachorro muito velho para algum câncer canino.


Hoje, tive o mesmo sonho, mas sem a moça do filme ruim.


Sonhei que entrava na intimidade de um viúvo. Um homem magro (não magrelo), com bigode e cabelos bancos. Usava óculos de grau e eu sabia que ele era uma pessoa elegante pois apareceu de terno e colete.


No passado, ele teve uma esposa e filha, mas com a morte da esposa, ele não quis saber muito da filha e decidiu que nenhuma mulher teria seu coração. Por isso, passou a ter relacionamentos só com homens.


No interior do quarto, uma porta do armário reunia algumas roupas da falecida mulher: blusas azuis com estampas de florzinhas e muitos broches de congregações cristãs.


Quando ele me viu pegar uma das blusas dela, eu soube o que aconteceu.


O homem elegante, a mulher devota e a filha moravam numa grande casa que, no passado, era um mosteiro. Nos fundos da propriedade foram construídos alguns barracões para abrigar itens de mercearia, galinheiro, horta, entre outras coisas.


Um dia, enquanto a esposa lavava roupas no tanque, a filha de quatro anos subiu no telhado do galinheiro com a ajuda de uma escadinha de pintor. De lá, pulou para o telhado da oficina e, daí, para o telhado do mosteiro transformado em casa grande.


Ao perceber que a filha estava no telhado, a mãe se desesperou. Gritava para a menina descer, mas a garotinha ria. Não com escárnio ou birra, mas de felicidade e emoção pela aventura. A mãe, então, decidiu subir nos telhados para alcançar a filha. 


Quando ela atingiu o telhado do mosteiro, ela quis seguir o mesmo caminho que a filha, sem considerar que ela - uma adulta - era muito mais pesada.


Andando pela beirada do telhado, algumas telhas se partem e ela vai de uma vez no chão. Ao fundo do grande terreno que servia como quintal e área de serviço, havia uma torre carcomida de igreja (a antiga igreja do mosteiro). Por causa da falta de conservação, a torre do sino tinha duas pequenas janelas e um buraco, grande o suficiente para uma criança pequena passar.


Era lá que a menina queria chegar.


Nessa hora, escuto os vizinhos do apartamento debaixo rindo e praticamente gritando uns com os outros. Era 3:03h da madrugada.


Não consegui dormir depois disso...


Ribeirão Preto, 19 de setembro de 2020.




9 de set. de 2020

O TANQUE VERMELHO

 Meu caro, minha cara.


Quando falta água em casa, por algum motivo só causado pela física ou por algum vizinho folgado, o jeito é armazenar água em baldes.


Quando isso acontece, lembro na hora do apartamento da Ponta da Praia.


Lá sempre faltava água nos períodos de temporada: férias, feriados prolongados, finais de semana com sol, finais de semana sem chuva (às vezes). Sempre quando os turistas vinham aproveitar um tempo na praia, mesmo que fosse uma praia de areia dura, mar escuro e de higiene duvidosa.


(Pensem comigo... vivi lá nos anos 80... não era como é agora...)


Nessas ocasiões, minha mãe enchia baldes com água e – não me perguntem por que – meu irmão e eu tomávamos banho no tanque vermelho que havia na área de serviço.


Para nós, crianças, era fácil: a gente era posto lá, de touca e tudo, usávamos uma esponja com o sabonete para nos limparmos e, depois, nos jogavam água com o canecão para tirar a espuma.


Muitas vezes, minha mãe esquentava a água no fogão, para que não sentíssemos tanto frio. Mesmo assim, reclamávamos da água ora muito quente, ora muito fria.


Em resposta, minha mãe sempre dizia para que parássemos de frescura.


Hoje, com as leis da física dando suas caras por aqui, tive que pegar um balde para tomar banho. Com esponja, sabonete e caneca, tomei um banho frio e cheio de lembranças.


Foi o suficiente para me sentar aqui e começar a escrever sobre os banhos naquele tanque vermelho.


E o suficiente para me lembrar que não me criaram para ser fresca.


(e sobre isso, eu só tenho a agradecer)


Ribeirão Preto, 09 de setembro de 2020





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