10 de out. de 2021

DEUSES DE UMA NOITE SÓ

Meu caro, minha cara.


Duas noites atrás conheci dois deuses em meu sonho.

Um casal, cujo único objetivo nessa terra era ficarem vivos e garantirem. (por qualquer meio) que seus filhos também se mantivessem assim.

E quando eu digo "por qualquer meio", eu falo muito sério.

Porque estavam dispostos a matar, enganar, subjugar, encarcerar e fazer sofrer quem quisesse impedir esses dois objetivos.

Além disso, sempre que permitido, aumentavam a prole, pois as imagens que eu tive davam a entender que o índice de mortalidade deles na infância era muito alto. Porém, essa preocupação não era apenas pelos pequenos e desprotegidos: gerar uma criança significava dar a elas uma parte de si, uma parte da uma força, na esperança que, quando crescidas, pudessem também lutar para que os de sua espécie também sobrevivessem e prosperassem.

No entanto, a noite em que eles me foram apresentados também foi a noite em que fiquei sabendo que seus planos foram frustrados. Pois sua casa foi invadida e seus filhos, caçados. Vi as crianças mais novas, deuses sem algum poder, serem arrancadas do colo dos irmãos mais velhos, enquanto o casal tentava (em vão) ofender seus ofensores com a força dos braços e as unhas em forma de adaga.

Foi um massacre. Ambos os lados tiveram suas baixas, mas o mais cruel foi ver os filhos daqueles deuses inertes, com peito e estômagos feridos, com gargantas rasgadas e olhos frios e fechados.

Os dois deuses, adultos, ao verem que sua permanência na própria casa era impossível, fugiram para algum canto feio e sujo, longe e mal afamado o suficiente para espantar invasores por si só.

Aos prantos, ambos fizeram as únicas coisas que poderiam fazer no momento: chorar muito, buscar consolo um nos braços do outro, jurar vingança e buscar se fortalecer.

Para isso, precisavam de ajuda e ela não tardou. Sabendo que os dois deuses foram vencidos e os pequenos deuses, mortos, seus apoiadores (ou discípulos, ou adoradores) vieram ao seu encontro. Passavam por um longo corredor, cheio de lâminas, que testavam a vontade dos crentes até o poderoso e triste casal. Enquanto a deusa perdia suas forças e, pouco a pouco via seus dedos e pele se transformarem em palha, seu par sofria transformação parecida, com as mãos se transformando em garras e o rosto, o semblante de um cachorro preto.

Com a ajuda de seus adoradores, os dois se deitaram em uma canoa feita de juncos e puderam descansar sob uma cama de pétalas de rosas brancas, rosas e vermelhas. As últimas pétalas foram deixadas para serem jogadas delicadamente sobre o rosto de palha e o rosto de cão.

Eles iriam dormir, protegidos parte pela escuridão da noite, parte pelo fogo das tochas que os discípulos mantinham acesas.

Para embalar o sono dos deuses, uma mulher velou por eles. Estava vestida de branco, tinha os cabelos soltos e muito pretos. Sobre a cabeça, uma guirlanda de flores vermelhas. Durante a canção que entoava, dançava em rodopios largos, ritmados e lentos. Perguntei a uma das pessoas que ajudaram a preparar o sono dos deuses quem era a mulher: uma sacerdotisa, uma virgem, uma noiva. Eles disseram que não era nenhuma coisa, nem outra. Eles não precisavam de ninguém especial, pois o importante era que alguém se importasse o suficiente para estar ali por eles, com e para eles.

Enquanto a mulher cantava e dançava, os deuses adormeceram e, pelo menos durante aquela noite, dormiram e puderam se esquecer que um dia haviam tido filhos e que, se lembrando deles, esqueceram que um dia foram assassinados por causa do medo transformado em inquisição.

Ao amanhecer, nas ruínas do refúgio, os apoiadores ainda estavam lá, no alto do edifício antigo e carcomido pelo tempo e vegetação. A claridade mostrava que o prédio quase não tinha mais telhados e apenas poucos trechos ainda mantinham paredes em pé, em detrimento das árvores e trepadeiras. Mesmo assim, era um belo local.

Foi também na claridade do dia que eu percebi quem eram aqueles adoradores: párias, deformados, doentes, velhos, pessoas excluídas de forma geral.

Na canoa feita de juncos, deus e deusa acordam, já com seus rostos "normais" de volta. De mãos dadas, foram de súdito a súdito agradecer pela vigília, enquanto impunham as mãos sobre sobre suas cabeças e davam beijos nos rostos de todos.

E prometeram que, enquanto não tivessem seus próprios filhos novamente, adotariam todos aqueles que os guardaram naquela noite, que os defenderiam e transmitiriam a eles as coisas que conheciam, visto que eles andavam por sobre a terra por muitas e muitas gerações e absorveram um número sem fim de informações e sabedoria.

Por últimos, os deuses olharam para mim e pegaram na minha mão com ternura. Lembro da expressão deles: ela, de vestido vermelho e agora com a girlanda de flores vermelhas lhe cingindo a testa, ele, com a barba volumosa e preta e semblante amigo.

Também me lembro dos sorrisos que me deram: um sorriso sem dentes, um sorriso satisfeito, um sorriso que continha uma longa história. Nossas mãos se separaram, eles começaram sua caminhada para o mundo novamente e eu acordei.

Ribeirão Bonito, 10 de outubro de 2021.




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