16 de mar. de 2012

INSÓLITOS LOCAIS DE APRENDIZAGEM


Meu caro, minha cara,

            Ontem eu estava sozinha em casa, assistindo TV, quando eu comecei a lembrar de coisas do passado. Ando pensando muito sobre o que acontece comigo hoje em dia e bebo do passado para entender como as coisas chegaram até o ponto em que estou hoje.
            Por isso, quando lembrei do velório da minha avó materna, eu fiquei surpresa.
            Foi em janeiro de 2006. Eu acabara de chegar em Mococa depois de ter prestado uma prova de concurso público em São Paulo. Minha avó estava internada na Santa Casa com pneumonia e minha mãe queria que eu saísse da rodoviária e fosse direto ao hospital para vê-la e me despedir. Não tive coragem. Não que eu não a amasse ou não me importasse, mas eu confesso que queria que ela morresse logo. Ela estava sofrendo havia dois anos: a consciência e a memória haviam lhe abandonado por causa do Alzheimer, a saúde lhe fugira por causa de uma queda, dois anos antes, que deixara no lugar o medo de se movimentar. Ela era uma tartaruguinha muito velhinha, com medo de se machucar, frágil, doente. E, mesmo assim, sentia nela um medo louco de deixar a vida, ao mesmo tempo em que sentia uma vontade louca de entregar os pontos. Aos filhos, restava o desejo de que tudo melhorasse.
            Quando eu cheguei de São Paulo, fui direto para casa. Meu pai foi até a rodoviária me buscar e perguntou se eu queria ver minha avó. Eu disse que não, que haveria tempo para isso. Ele concordou na hora. Minha mãe estava lá em casa e queria saber se eu tinha ido até o hospital. Quando eu disse que não, ela ficou sentida. Acho que não demorou uma hora até que o telefone tocasse: era minha madrinha, irmã de minha mãe, avisando que ela finalmente havia ido. Minha mãe foi ao Inferno naquele momento. No meio de tanta dor, ela me acusou de não ter ido ir visitá-la. Um dos argumentos era de que eu deveria ter aproveitado os momentos de lucidez que todos os moribundos padecem antes de falecer. Mas eu não fui, e isso é um fato.
            Era tarde da noite quando o velório começou. Inicialmente, só os filhos que moravam em Mococa e seus descendentes estavam lá. Muitos, inconformados, se perguntando o que fariam de suas vidas sem ela. Eu queria dizer que a vida continuava, que aquilo era uma fase, uma etapa pela qual todos nós passaríamos, que a minha avó morreu depois de muito viver (ela se foi com quase 96 anos nas costas). Eu queria consolar a minha mãe, mas ela olhava para mim e lembrava que eu não fui ao hospital me despedir. Foi constrangedor: como eu poderia dizer à minha mãe que eu estava feliz com o que estava acontecendo? Era um sofrimento para todos! Para a minha avó, principalmente! Para mim, ela havia deixado de viver quando deixou que o esquecimento a capturasse. Não foi voluntário, eu sei. Mas foi o que ocorreu.
            E então, quando muitos estavam chorando e poucos estavam constrangidos, meu pai aparece, perguntando por que estavam tão tristes. “Saudade, sim. Tristeza, nunca”, ele dizia. E foi desse jeito que ele começou a lembrar a todos o porque daquela funesta reunião:
            “Essa mulher viveu a vida muito bem. Morreu com quase 96 anos. Aposto que foi a única de sua geração que colocou os pés na água do mar (um parênteses: tenho como prova a foto dela de maiô, dentro d’água, na praia de Santos). Já viajou duas vezes para Aparecida do Norte. Teve nove filhos (uma morreu com cinco meses de idade) e (tirando essa tia minha) não viu nenhum filho morrer. Colocou todos os netos e bisnetos no colo. Até a queda dela em 2004, ela era independente...”
            (e, para coroar o discurso)
            “... E ENTERROU DOIS MARIDOS!”
          Foi o suficiente para que todo mundo começasse a rir. Era verdade! A minha avó era phoda! Viveu em uma época em que ninguém tinha muitos recursos. Tocou uma família inteira para frente. Era batalhadora e esmerada. Era admirável.
         Depois desse discurso, todos os que estavam no velório começaram a lembrar das histórias que tiveram com ela: a da galinha que comeu formigas demais, das surras que deu nos filhos, das festas de junho e provas de quentão, das mudanças de casa, dos biscoitos, bolos e pães, da forma como conduzia a casa e os filhos, do discreto amor que nutria pelo marido, de tudo. Por volta das 03h da manhã, o velório parecia uma balada, de tanto que a gente ria das histórias que eram contadas.
          Estava aliviada; meu pai havia conseguido o que eu queria ter feito: fazer com que as pessoas se lembrassem do que realmente precisava ser lembrado.
           No dia seguinte, depois do translado do corpo até a cidade onde ela seria enterrada - ao lado do corpo do meu avô - percebi o quanto ela era admirada pelo pessoal da cidade: praticamente todo mundo foi ao enterro dela.
           (tá certo que Coqueiros não é uma cidade muito grande, mas mesmo assim, mora gente lá, e o pessoal foi em peso)
     A grande maioria das pessoas que estavam lá não é da época da minha avó; muitos contemporâneos dela já haviam morrido. Logo, os eu foram, foram pelas histórias.
         Geralmente, quando alguém te olha com inveja, é porque ela está com inveja do seu emprego, do seu namorado, do seu cabelo, do seu carro novo. Lá foi a única vez, na história da humanidade, que alguém me olhou com inveja por eu ser neta de uma defunta. Ela impunha muito respeito mesmo. Depois do enterro, os parentes estavam consolados com as histórias que ficaram - e que consolam até hoje.
          Confesso que só me dei conta a pouco tempo do porque esse episódio foi tão importante para mim. Fazendo uma retrospectiva, eu percebi que, quando eu me deparava com uma situação de desesperança, eu buscava fazer o que meu pai fez naquele dia: encarar a situação tal qual ela se apresentava, fazer a retrospectiva do que realmente importava e, ao invés de ficar perguntando “por que”, começar a perguntar “para que”.
     Quando você se pergunta do “por que” de alguma coisa, você quer explicações; obrigatoriamente você olha para o passado. Quando você pergunta “para que”, você quer prognósticos; o seu olhar se volta para o futuro.
         Admitir naquele momento que a minha avó morreu foi um fato. Admitir que ela estava sofrendo foi um fato. Admitir que ela teve dois maridos e nove filhos foi um fato. Admitir que ela viveu muito, e muito bem, até quase o final da vida, foi um fato.
Contra fatos não há argumentos.
Aprendi naquele velório que as coisas e pessoas vão embora. Isso independe da nossa vontade. Nossas mãos nunca serão fortes o suficiente para segurar entre elas tudo aquilo que a gente quer. Por isso, não adianta ficar batendo a cabeça na parece se perguntando “por que”. Eu sempre penso, quando alguma coisa chata ou grave acontece, o que pensar de fato sobre o assunto, o que tirar dele. O desespero da situação diminui fazendo este exercício.
Quando fiz Psicologia, eu achei que eu deveria aprender que a ter o olho e o ouvido treinados. Eu era obrigada a entender as situações que estavam à minha volta, não de aceitar todas elas. Havia tomado isso como fato consumado.
No curso da minha história após a faculdade eu fui vendo que aceitar é tão importante quanto entender. Quando a gente não aceita, sofremos da mesma forma que minha mãe sofreu no momento em que minha avó morreu. No auge da sua dor, ela só conseguia pensar no que faria da sua vida sem ela. O fato em si (a morte da mãe) havia ofuscado tudo o mais. Quando meu pai começou a lembrar de outras coisas que aconteceram, do qual minha mãe foi testemunha, eu senti que ela pode perceber que, na vida, nada é isolado. Tudo está alinhavado dentro de uma história e fatos são apenas episódios. A morte da Dona Odila foi o último episódio da história dela. Uma história gigantesca, que teve como resultado não a morte, mas a constatação de que ela era uma mulher muito forte, destemida, temida, carinhosa e honrada. Morrer, no fim das contas, foi um detalhe inevitável.

Geralmente os velórios são locais de lamentação, mas aquele foi o local de celebração de vida. De todas as vidas envolvidas com aquela pessoa. Lá, tive o meu primeiro contato com a Arte da Aceitação. Que coisa inóspita...

Ribeirão Preto, 16 de março de 2012.

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