Meu caro, minha cara,
Hoje,
enquanto eu retornava do trabalho, vim pensando algumas coisas. Geralmente eu
faço o mesmo trajeto, embora eu tenha inúmeros à minha disposição: eu atravesso
a cidade por dentro, ao invés de dar a voltar pela Francisco Junqueira, e passo
bem na parte velha do Centro, próximo à região conhecida como Baixada.
Isso
veio à tona porque faz pouco mais de um ano que eu faço esse caminho e ele
sempre me fez pensar...
...e
daqui a alguns dias, eu farei outro caminho para chegar em casa, pois irei me
mudar.
Durante
esse um ano e pouco, enquanto eu passava com meu carro 97 pelo Centro, eu
passei a ver algumas figuras repetidas. Digo “figuras” porque algumas pessoas
representavam uma classe; outras eram pessoas mesmo. Eu vou me explicar.
Para
quem não conhece, a Baixada é um ponto de baixo meretrício do Centro. Ela forma
um conjunto com a região do Boulevard à noite e as casas de shows eróticos em
bairros mais afastados, mas não menos nobres. Cada uma tem sua especialidade,
seus horários e seus nichos de mercado: travestis trajados como um cosplay
erótico em plena madrugada, senhoras de meia idade fumando Derby ao meio dia,
universitárias que dormem cedo para não ficarem com olheira para os clientes
das 18h, mulheres com curvas exuberantes vestindo suas marcas registradas à luz
do poste. Essas são as figuras que eu vejo quando volto para minha casa:
pessoas vestidas de estereótipos, bem como seus clientes.
Entretanto,
existem algumas que residem nesse mesmo cenário e que não se enrolam no coberto
do prévio conceito. Essas, para mim, são as “pessoas” a que me referi acima.
De
todas, eu elejo uma. Apenas uma, para contar aqui. Uma moça. Magra. Muito
magra. Deve ser mais nova que eu, ou então ter quase a minha idade. Não
importa: ela é uma moça jovem e muito magra. Mesmo no verão de Ribeirão Preto
ela usa sapatilhas pretas e meias soquete coloridas. Suas roupas não são
atraentes... São um misto de conforto e doação – ou pura falta de estética, já que
boa parte das vezes a calça legging não combina com a camiseta ou o agasalho.
E
nunca, mas nunca, as roupas dela combinam com as meias soquetes.
Ela
sempre carrega uma bolsa enorme. A impressão que me dá é que todo dia ela está
fugindo de casa, de tão grande é sua bolsa. Ela sempre fica ali, sentada, no
cruzamento de uma das ruas próximo ao teatro. Os cabelos são muito compridos,
lisos e pretos e confesso que até hoje não decidi ainda se ela é uma moça
bonita ou feia. Às vezes, quando volto para casa no horário, eu a vejo na mesma
esquina, sentada na frente de uma loja de colchões, como se esperasse uma
carona. Às vezes eu penso que ela já foi embora, mas eis que, quando volto mais
tarde do trabalho por algum motivo, me pego de frente com ela novamente, na
mesma esquina, como se lá fosse sua casa e para lá ela voltasse a todo momento para
chamar de lar.
Fico
me perguntando se um dia vou estacionar o carro e perguntar para ela o que faz
ali, se precisa de ajuda ou se simplesmente está tudo bem. Perguntas simples,
apenas para saber se está tudo bem mesmo. Mas confesso que não faço isso porque
tenho medo da reação dela: ela já está ali, no malfadado Centro, numa esquina,
à noite. Vai que ela me interprete mal...
(E
você, meu caro e minha cara? Como será que interpretou este último parágrafo?)
Que
seja... O que quero dizer é que desde que mudei ano passado, voltar para casa é
apenas algo que acontece enquanto eu vejo que há outras vidas do lado de fora
do vidro do meu carro.
Já morei em
vários bairros aqui em Ribeirão e todos os caminhos de retorno ao “lar” eram
extremamente parecidos. Não importava quais eram as ruas que eu passava, eles
sempre eram vazios de gente e lotados de carros ou espaços. A volta para casa
era uma sucessão de esquinas e semáforos, dentro da mais profunda e sincera falta
de importância com o mundo ao meu redor.
Gosto
de passar no Centro. Gosto de ter certo contato com o que muitas pessoas
descrevem como “decadência” porque, na verdade, é o caminho mais vivo que já
tive até hoje. Lá as pessoas bebem, fumam, andam, escutam música, se provocam,
flertam. Não digo isso com alegria ou inveja, porque quando olho para a
Baixada, eu vejo um misto de excitação e solidão muito grande em todas as
pessoas.
Eu
imagino o que elas fazem de verdade além daquilo que os olhos veem e, ao final
de cada reflexão, eu percebo que elas comem, ficam doentes, dormem, lavam a
própria roupa, compram analgésicos na farmácia, fazem compras no mercado e dão
bom dia para o padeiro e boa noite para o dono do bar.
E
tirando a parte do padeiro e do dono do bar, eu me vejo fazendo as mesmas
coisas corriqueiras, do dia a dia, que toda pessoa comum geralmente faz. Pois é
isso o que eles são e eu também: comuns.
Quando
eu trilhava os caminhos vazios, eu retornava para casas tão vazias de
sentimento quanto. Mesmo agora, não encarando o local onde estou agora como meu
verdadeiro lar, é o mais aconchegante que já tive e de longe o mais acolhedor.
Por coincidência, o retorno para casa geralmente me brindou com cenas inusitadas.
E isso é algo que eu gosto de olhar.
Na
próxima semana terei um novo caminho para casa. Terei uma nova casa.
E eu não sei
como as coisas serão.
Ribeirão Preto, 28 de julho de
2015.
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