28 de jul. de 2015

EU TE CONHEÇO, MAS EU NÃO SEI QUEM VOCÊ É

Meu caro, minha cara,

                Hoje, enquanto eu retornava do trabalho, vim pensando algumas coisas. Geralmente eu faço o mesmo trajeto, embora eu tenha inúmeros à minha disposição: eu atravesso a cidade por dentro, ao invés de dar a voltar pela Francisco Junqueira, e passo bem na parte velha do Centro, próximo à região conhecida como Baixada.
                Isso veio à tona porque faz pouco mais de um ano que eu faço esse caminho e ele sempre me fez pensar...
                ...e daqui a alguns dias, eu farei outro caminho para chegar em casa, pois irei me mudar.
                Durante esse um ano e pouco, enquanto eu passava com meu carro 97 pelo Centro, eu passei a ver algumas figuras repetidas. Digo “figuras” porque algumas pessoas representavam uma classe; outras eram pessoas mesmo. Eu vou me explicar.
                Para quem não conhece, a Baixada é um ponto de baixo meretrício do Centro. Ela forma um conjunto com a região do Boulevard à noite e as casas de shows eróticos em bairros mais afastados, mas não menos nobres. Cada uma tem sua especialidade, seus horários e seus nichos de mercado: travestis trajados como um cosplay erótico em plena madrugada, senhoras de meia idade fumando Derby ao meio dia, universitárias que dormem cedo para não ficarem com olheira para os clientes das 18h, mulheres com curvas exuberantes vestindo suas marcas registradas à luz do poste. Essas são as figuras que eu vejo quando volto para minha casa: pessoas vestidas de estereótipos, bem como seus clientes.
                Entretanto, existem algumas que residem nesse mesmo cenário e que não se enrolam no coberto do prévio conceito. Essas, para mim, são as “pessoas” a que me referi acima.
                De todas, eu elejo uma. Apenas uma, para contar aqui. Uma moça. Magra. Muito magra. Deve ser mais nova que eu, ou então ter quase a minha idade. Não importa: ela é uma moça jovem e muito magra. Mesmo no verão de Ribeirão Preto ela usa sapatilhas pretas e meias soquete coloridas. Suas roupas não são atraentes... São um misto de conforto e doação – ou pura falta de estética, já que boa parte das vezes a calça legging não combina com a camiseta ou o agasalho.
                E nunca, mas nunca, as roupas dela combinam com as meias soquetes.
                Ela sempre carrega uma bolsa enorme. A impressão que me dá é que todo dia ela está fugindo de casa, de tão grande é sua bolsa. Ela sempre fica ali, sentada, no cruzamento de uma das ruas próximo ao teatro. Os cabelos são muito compridos, lisos e pretos e confesso que até hoje não decidi ainda se ela é uma moça bonita ou feia. Às vezes, quando volto para casa no horário, eu a vejo na mesma esquina, sentada na frente de uma loja de colchões, como se esperasse uma carona. Às vezes eu penso que ela já foi embora, mas eis que, quando volto mais tarde do trabalho por algum motivo, me pego de frente com ela novamente, na mesma esquina, como se lá fosse sua casa e para lá ela voltasse a todo momento para chamar de lar.
                Fico me perguntando se um dia vou estacionar o carro e perguntar para ela o que faz ali, se precisa de ajuda ou se simplesmente está tudo bem. Perguntas simples, apenas para saber se está tudo bem mesmo. Mas confesso que não faço isso porque tenho medo da reação dela: ela já está ali, no malfadado Centro, numa esquina, à noite. Vai que ela me interprete mal...
                (E você, meu caro e minha cara? Como será que interpretou este último parágrafo?)
                Que seja... O que quero dizer é que desde que mudei ano passado, voltar para casa é apenas algo que acontece enquanto eu vejo que há outras vidas do lado de fora do vidro do meu carro.
Já morei em vários bairros aqui em Ribeirão e todos os caminhos de retorno ao “lar” eram extremamente parecidos. Não importava quais eram as ruas que eu passava, eles sempre eram vazios de gente e lotados de carros ou espaços. A volta para casa era uma sucessão de esquinas e semáforos, dentro da mais profunda e sincera falta de importância com o mundo ao meu redor.
                Gosto de passar no Centro. Gosto de ter certo contato com o que muitas pessoas descrevem como “decadência” porque, na verdade, é o caminho mais vivo que já tive até hoje. Lá as pessoas bebem, fumam, andam, escutam música, se provocam, flertam. Não digo isso com alegria ou inveja, porque quando olho para a Baixada, eu vejo um misto de excitação e solidão muito grande em todas as pessoas.
                Eu imagino o que elas fazem de verdade além daquilo que os olhos veem e, ao final de cada reflexão, eu percebo que elas comem, ficam doentes, dormem, lavam a própria roupa, compram analgésicos na farmácia, fazem compras no mercado e dão bom dia para o padeiro e boa noite para o dono do bar.
                E tirando a parte do padeiro e do dono do bar, eu me vejo fazendo as mesmas coisas corriqueiras, do dia a dia, que toda pessoa comum geralmente faz. Pois é isso o que eles são e eu também: comuns.
                Quando eu trilhava os caminhos vazios, eu retornava para casas tão vazias de sentimento quanto. Mesmo agora, não encarando o local onde estou agora como meu verdadeiro lar, é o mais aconchegante que já tive e de longe o mais acolhedor. Por coincidência, o retorno para casa geralmente me brindou com cenas inusitadas. E isso é algo que eu gosto de olhar.
                Na próxima semana terei um novo caminho para casa. Terei uma nova casa.

E eu não sei como as coisas serão.


Ribeirão Preto, 28 de julho de 2015.

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