8 de abr. de 2019

CAÇULA

Meu caro, minha cara,

Quando eu era criança, costumávamos passar as férias na casa da minha vó e minha tia, no interior de SP. Gostava muito das férias, pois era a oportunidade de brincar na rua, com outras crianças. Em Santos, não tínhamos a oportunidade de fazer isso.
A rua tinha muitos meninos e poucas meninas. Brincar com os meninos era muito legal, ao contrário das meninas. E o motivo era claro: meninos querem se divertir; meninas querem ver quem é melhor que quem.
Posso estar sendo injusta, mas esta é a leitura que faço daquele grupo, naquele tempo.
Em um dos períodos de férias, apareceu um menino que não era da nossa turma: ele era mais novo e morava numa casa ao final da rua. Não sei como ficamos amigos, mas ele era muito divertido. Ele era tão ingênuo, tão inocente, que quase me senti no papel de irmâ mais velha.
Quase.
Ele gostava de brincar com fantoches e de ir pescar com o avô. Me olhava admirado por eu ser mais velha e saber mais coisas do que ele. "Quando você chegar na minha série você vai saber".
Um dia, ele voltou de uma pescaria com o avô e com o pai e eu o chamei para brincar com a gente. Ele foi, mesmo cheirando a peixe. Os meninos não ligaram muito (afinal, todos já estavam encardidos de tanto brincar), mas as meninas fizeram muito pouco caso do menininho.
Ele ficou tão sentido que deixou a rua quase chorando. E, quando eu fui atrás dele, as meninas passaram a ridicularizar a mim, dizendo que eu estava tomando as dores do meu "namorado".
No auge dos meus 9 anos de idade, eu travei. Não queria que meu amigo fosse embora, da mesma forma que eu não queria virar motivo de chacota na rua. Deixei ele ir embora, com remorso.
Nos dias seguintes, ele não me chamava mais para brincar com seus fantoches. Quando eu passava em frente a casa dele, via que ele brincava sozinho na garagem de casa. Olhava para mim e virava o rosto.
Ele devia ter uns 7 anos, no máximo.
As férias acabaram e vieram outras. Fiquei sabendo que entre o intervalo de um ano, a família se mudou para outro bairro. Mesmo assim, nas férias, passava em frente a casa para lembrar do meu amigo humilhado.
Por fim, crescemos todos. Nunca mais vi ninguém da rua - e as opiniões que, antes, eram tão importantes, viraram pó.
Pena que os remorsos ficaram...

Ribeirão Preto, 08 de abril de 2019

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