12 de fev. de 2012

PODRE.

Meu caro, minha cara,

            Decidi que escreveria outra coisa. Estava em outro texto, abordando outro assunto, quando percebi que o assunto se esgotou antes de eu terminá-lo. Não seria justo escrever sem inspiração. Não seria justo escrever algo que seria somente informativo.
            Por esta razão, abri outro arquivo no Word e comecei a escrever ao léu...

            Ontem à noite, enquanto tentava dormir, fiquei praticando um dos meus esportes preferidos: imaginar. “Imaginar o quê?”, perguntaria qualquer pessoa normal. Tudo. Qualquer coisa. Sempre fui boa nisso e tomei a prática como esporte: acalma minha alma, descansa meu cérebro, brinco à vontade e encho a cara de serotonina.
            (não que isso me dê um sono tranquilo... mas isso é outro assunto)
            Bom, voltando: estava eu imaginando quando, de repente, ativo a função “Lembrar” no meu cérebro. Lembrei-me de algo que meus pais e eu conversávamos neste último final de semana, quando estava em Mococa: “É, Carolina... Afinal, você tem um dedinho podre para escolher as coisas...”.
            Quem me disse isso foi meu pai e minha mãe balançava a cabeça, concordando. Ai, como dói!!! Eu fico me colocando no lugar deles: como se sentem tendo uma filha que tem “dedo podre para várias coisas”?
            Cabe aqui, meu caro leitor, explicar (com um exemplo) o porquê desta afirmação. Um deles é: tenho dedo podre para escolher onde vou morar (segundo meus pais, inicialmente). Não digo só a casa, mas também as companhias. Para eles, meu dedo é podrérrimo para isso. E esta constatação começou quando fui para a faculdade.
            Estava lá eu, bela e formosa, no meu primeiro ano de faculdade, morando em uma pensão com outras sete criaturas. Eu me achava a Rainha da Cocada Preta, quando a dona da pensão chamou todas nós para ter uma conversa franca: sessão terapia em grupo. Afff... Foi horrível: todas, sem exceção, tinham alguma coisa para falar do meu comportamento. O quanto eu era egoísta, espaçosa, folgada, insensível, etc, etc, etc... E eu, insensível até então, não notara nada disso. Eu era cega e naquele momento eu via. Ah, Sócrates... Saí da caverna...
            Fiquei desolada, me sentindo culpada. Uma coisa era meus pais dizerem que eu era espaçosa. Que pai e que mãe não vai dizer que o filho bagunceiro não é espaçoso? Só um casal de pais imbecis!
            Mas meus pais não são dois imbecis...
            Daí, resolvi sair da pensão e fui morar na minha primeira república. Dei um azar danado: achei alguém pior que eu, mas eu ficava pensando “Senhor! Será que sou eu? Isso é a reação dela a mim?”. Desta feita, pensava se eu não era toda podre, ao invés de ter só o dedo nesse estado cadavérico. Foi um ano péssimo. 2001 foi horrível. Muita coisa aconteceu, incluindo um término ridículo de um namoro desastroso.
            (dedo podre para escolher alguém para ficar ao meu lado? Nem discuto agora. Farei isso depois, se for o caso)
            Chutei o pau da barraca, me mudei mais uma vez e tive mais problemas de relacionamento... Brigas, intrigas, birras... Afff... Credo! Será que era eu? E lá estavam meus pais, me lembrando da necrose psicológica de alguns membros periféricos de meu corpo. E eu lá, pensando “onde foi que eu errei”? Meu irmão, todo certinho, ralando, trabalhando, insistindo em vencer na vida e eu, reclamando, reclamando, reclamando... Perdendo tempo com bobagens.
            (nota: hoje o Ricardo serve de exemplo para mim e para muita gente no que se refere ao que acontece com pessoas que se esforçam na vida e têm controle pessoal sobre seus ganhos e gastos)
            Mas, voltando à vaca fria: o tempo passou, continuei nessa casa, pessoas vieram e foram embora. Foi nesse período que eu descobri que, assim como eu, várias pessoas têm problemas de relacionamento. E o motivo não era só o dedo podre. Era uma questão de postura, de empatia e de comprometimento. Até quanto você está disposto a abrir mão e até quanto você está disposto a fincar o pé? Consegui, assim, amigas para toda uma vida; pessoas que eu brigo para que sejam melhores, para que abram os olhos; pessoas com quem eu me divirto, falando as maiores bobagens e brincando, mas brincando muito mesmo, feito criança. Descobri, sendo amiga delas, que eu tenho um prazer enorme em ajudar quem eu gosto, e um prazer inenarrável de ser indiferente com quem eu detesto. “Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei”. Benedito Valadares sabia das coisas...
            (vamos esclarecer uma coisa: eu gosto de ajudar, mas não gosto de ficar ouvindo lamúrias... Sempre me lamuriei muito e estou, há alguns anos, trabalhando para parar de desfiar o rosário de desventuras na minha vida. Por isso, não sou boa com compaixão - a menos que me peçam antes para eu ter essa postura. Aí sim eu consigo organizar meus conteúdos internos para ser uma boa ouvinte. Mas me avise antes, por favor... Não queira me pegar desprevenida, pois não vai prestar...)
            E chega o final da faculdade. E volto a morar com meus pais. E a gente ficou brigando por um pouco mais de um ano. E o meu dedo podre se revelou em todo seu esplendor e glória: eu, psicóloga formada, não conseguia fazer meus pais entenderem que eu não era vidente e não lia pensamentos. Eu, psicóloga formada, não sabia como fazer meus pais entenderem que havia muitos recursos internos e muitas conexões psicológicas que tornavam inútil a conversa entre nós, nos termos apresentados por eles.
            Então, resolvi (finalmente), usar o que eu havia aprendido para dar a entender a eles o que eles queriam: eu passei ouvi-los. Estava cansada de ouvi-los dizer que havia algo errado comigo... Fui fazer a experiência clínica e me pus a ouvir a queixa inicial desse casal de pais.
            No começo, eu gritava por dentro. “Tá errado! Eu não sou assim, do jeito que vocês estão falando que eu sou! Eu sou assado!!!”. Mas ficava quieta,   pois era deles que vinha minha tigela de mingau (para maiores informações sobre, leia o conto “O duende da Mercearia”, de Andersen). Depois, ficava analisando de onde eles tiravam tudo isso que me diziam... E algo aconteceu! Fiat Lux!!!Faça-se a luz!!!”. Tive que cortar a própria carne: o quanto eu era orgulhosa... (e ainda sou...)
            Depois disso, percebi que meus pais tinham se acalmado comigo. O que havia começado como uma estratégia para eles pararem de implicar com meu modo de ser acabou se tornando uma estratégia para eu melhorar como pessoa.
            Tenho um livro dos “Alcoólicos Anônimos” comigo (não! Eu não sou alcoólatra! Hoje em dia eu bebo água com gás, num copo com gelo e limão, porque é mais barato e eu não fico fazendo estragos na minha vida social... Mas eu ainda bebo e gosto de beber). Eu ganhei o livro “Os Doze Passos e As Doze Tradições”. GANHEI, tá? Cavalo dado não se olha os dentes. Pois bem: ganhei o livro e o primeiro passo é “Admitimos que somos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas”. Guardadas as devidas proporções, quando se tem um problema, o primeiro passo é admitir que temos um problema e que ele está infernizando nossa vida porque nós nos deixamos levar por ele.
            Lembro aqui (se me permitirem o paralelo) dos Doze Trabalhos de Hércules. Nesta história, o primeiro trabalho que Hércules recebeu foi o de lavar os estábulos do rei Aúgias: o estábulo abrigava 3.000 bois e não era limpo há 30 anos. Hércules, com sua força monumental, alterou o curso de dois rios, para que passassem por dentro do estábulo, deixando-o limpinho. Por que me lembrei desta cena? Porque, até para um semideus, tarefa é tarefa, não importa o quanto ela é suja. Se Hércules teve que enfiar a mão na merda para conseguir algo, por que meros mortais deveriam ter destino menos odorífico?
            Assim, admito que tenho um problema: meu dedo é podre. E, contra ele, eu tenho que trabalhar muito...
E começou a se revelar com a escolha de algumas companhias no passado.
            (mas são algumas, tá? Não todas. O nº de amigas legais que tenho aumentou sensivelmente depois que admiti que tenho um pezinho no Lado Negro da Força...)
            Contudo, partindo do princípio que sou minha primeira companhia, eu tenho o dedo podre para algumas decisões que eu tomei para mim. As coisas com que eu gasto meu dinheiro, meu tempo, minha saliva, minha beleza... Várias coisas eu escolhi errado.
            E eu admito todas elas.
            O segundo passo do AA é admitir que há um Poder Superior maior do que nós - e coloco aqui que esta concepção de “Poder Superior” não tem nada a ver com religião. Tem a ver com humanidade. Somos finitos, falhos e nossa inteligência é limitada. Não nossa criatividade. Por isso, temos que verificar - e admitir - até onde vai a nossa capacidade de realização e a nossa necessidade de ter fé naquilo que não está em nossas mãos. Dai a cada um sua exata medida.
            Este é, para mim, um divisor de águas, onde se concentra a minha postura de vida: o que é meu e o que é do outro; o que está ao meu alcance e o que não poderei ter; o que é de minha responsabilidade e o que é da responsabilidade do outro OU o que é da minha responsabilidade e o que é acaso?
            Não há nada no mundo, nem recompensas, nem castigo. O que há são conseqüências” (Robert Ingersoll). Essa frase resume bem muitas coisas.
            Isso também me dá uma noção de limites e, por incrível que pareça, de liberdade: sou livre para fazer o que eu quiser dentro do meu raio de ação. Cabe a mim decidir sobre o que faço ou deixo de fazer dentro dele. Cabe a mim, também, aguentar as conseqüências.
            E são as conseqüências com as quais eu estou tendo que lidar agora.
            No início deste texto, eu disse que eu daria um exemplo do porquê do dedo podre. Comecei falando das pessoas com quem convivi e, de forma mais branda, das escolhas que fiz para mim. Eu poderia citar outros exemplos: escolha da carreira e dos lugares aonde fui trabalhar, escolha dos namorados que eu tive, escolha de como tratei as pessoas da minha família... Todos seriam bons exemplos, mas, ao fazê-lo, faria também uma devassa na minha vida. E meu intuito não é esse.
Eu confesso que tenho medo desse meu dedo podre. Geralmente ele nunca traz nada de bom para ninguém, mas acredito eu, com a experiência e ouvindo os outros, ele pode ser extirpado. O duro é quando o tempo passa e percebo que tenho um membro que, ao invés de se juntar aos outros e me ajudar a segurar as rédeas da minha vida, tem vida própria e “me engana”.
Nesses casos, eu sei (conscientemente eu sei) que a Humildade e o Conhecimento são armas fortes contra as indicações malfadadas. Mas fico me perguntando: “Qual o limite? Qual a medida?”; “Quanto eu sei que minha decisão é baseada em dados, em fatos, ao invés de sonhos e falsas interpretações?”; “Em qual medida os passos que dou são motivados pela minha Vontade de dobrar a Realidade ou pela própria Realidade?
            É difícil, isso! Tá achando que é bolinho?

            Eu confesso: ainda não confio em todas as decisões que tomo por causa desse detalhe. Ainda necessito de apoio e muitos conselhos. Eu me envergo por ter um dedo assim. Ninguém gosta do que é podre...

(Ribeirão Preto, 09 de fevereiro de 2012)   

Um comentário:

  1. Oi Marol! Adorei seu texto...muito profundo, muito íntimo, pessoal, muito...VOCÊ!
    Só queria dizer que morar contigo foi muito especial e importante em minha vida, um aprendizado e tanto! Era engraçadíssimo ver você organizar os potes plásticos minuciosamente, (quem não tem manias não é mesmo?) Mas inesquecível foi quando você me ajudou a sair do buraco em que me encontrava, chacoalhando-me a parar de "lamuriar" e começar a viver a minha vida encarando os problemas de frente, apresentando-me à terapia. Obrigada!
    Espero que além de brigas, intrigas e etcéteras tão pequenas, eu tenha tido algum papel para você naqueles tempos em Assis.
    Ainda me lembro de você quando faço macarrão ao molho branco com frango, e também macarrão com atum.......
    Espero muito que você esteja bem, feliz, realizando-se a cada dia! Você merece o melhor, sempre!
    Um forte abraço,
    Ana.

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