2 de mar. de 2016

1KM/H

Meu caro, minha cara,

Não sei bem como começar hoje. Tenho um desejo muito grande de colocar para fora algo que venho notando a muito tempo, mas ainda não está algo totalmente formatado. Por isso, mesmo não havendo nenhuma elegância nas frases iniciais, começarei a escrever assim mesmo, pois a minha esperança é que em algum momento tudo isso faça um pouco de sentido para mim e para você.

Uns meses atrás eu machuquei o meu joelho. E quando digo “machuquei” eu quero dizer que eu “machuquei mesmo”. Fazia faxina em casa e quando fui pegar uma coisa no chão, senti uma dor absurda no meu joelho, que me fez rolar de tanta dor. Não caí, não bati, não escorreguei. Apenas me agachei e a dor veio.

O resumo dessa história é que eu fui ao médico, fiz exames, tive que fazer cirurgia e agora estou em recuperação. Meu joelho ainda dói e ontem tive a notícia que a tendência é que ele continue doendo, pois além do menisco rompido, eu lesionei a cartilagem. E cartilagem praticamente é algo que não regenera.

Mas o que eu quero falar não é sobre a dor, a cirurgia ou a recuperação. Da recuperação, talvez, mas não necessariamente sobre ela. Eu quero falar sobre o que eu tive que fazer desde que tudo isso começou.

Eu sempre fui acelerada. Não quero dizer que eu seja uma pessoa ágil, mas o meu grau de ansiedade sempre me deixou com vontade de estar anos-luz à frente do que vivia. Essa impaciência era quase que vomitada sobre mim e as pessoas com que convivo, principalmente aquelas com quem trabalho. Sempre preocupada com o próximo passo, nunca interessada no movimento feito no agora. Essa era eu (ou sou eu, tenho medo de ser tão otimista assim).

Entretanto, com a dor, tudo mudou.

Ela me fez ficar mais lenta. No sentido literal da palavra. Minhas passadas ficaram mais curtas, tive que começar a pensar sobre qual o melhor lugar para colocar o pé, como subir ou descer uma rampa com segurança e sem forçar muito a minha perna. Ao final, para conseguir andar sem me machucar mais ainda, tive que apelar para uma bengala.

Devido ao meu caminhar mais lento, eu tive que começar a fazer duas coisas: 1) a compreender que a minha lentidão era temporária e necessária naquele momento, pois não conseguiria andar de um jeito “normal” sem me ferir mais e 2) a observar mais as coisas que estavam ao meu redor. Andar no modo “câmera lenta” e prestar atenção aonde pisava passaram a ser coisas naturais. Sendo assim, também passou a ser natural olhar as coisas que estavam ao meu redor.

E que descoberta mágica foi isso: comecei a ver mais a atitude dos motoristas na rua, o quanto uns são mal-educados, outros desconhecem que existem outras pessoas fora do seu carro e ainda aqueles que são compreensivos e te ajudam a atravessar a rua (parando todo o trânsito que está atrás deles).

Sei que qualquer pessoa que ler isso irá achar que eu não falei mais do que o óbvio e que eu não deveria me espantar assim, mas a respeito disso eu digo: você não tem noção do quanto as pessoas são esquizofrênicas no trânsito até você ter uma dificuldade de locomoção e se ver à mercê desse tipo de gente numa situação assim.

Outra coisa que pude perceber é a própria via pública: como as calçadas e canteiros podem ser verdadeiras armadilhas, mas também esconder muitas coisas legais. Lembro de um dia quando chegava ao trabalho e estava tão ensolarado que parei por uns 10 segundos no meio da calçada, só para registrar bem na mente quão bonito foi ver o sol entre as ramagens das árvores balançando ao vento. Até tentei tirar uma foto, mas desisti quando percebi que foto alguma seria tão bonita como essa lembrança.

Outra coisa que também me lembro foi de um dia de chuva. Voltava para o carro em meio ao canteiro central da avenida, prestando atenção para não tropeçar em nada, quando vi um caramujo comendo biscoito de morango. Eu confesso que parei e fiquei ali também durante um tempinho, na chuva, vendo aquele bichinho relativamente nojento comendo um biscoito abandonado no chão. Eu aposto que, na sua lentidão, ele deve ter comido o biscoito todinho.

Passei também a reparar nas pessoas na rua e nos outros locais. Uns não estão nem aí se você tem ou não alguma dificuldade. Outros são gentis, outros ainda se assustam: perdem o fôlego, dão um pulinho para trás, como se pedissem desculpas por não terem qualquer problema ortopédico e eu sim. E olhe que o meu é temporário! Imagino como deve ser chato para portadores de necessidades especiais ter que lidar com esse tipo de assombro dia após dia.

Da mesma maneira que eu tive a oportunidade de ter que aproveitar melhor meu tempo para observar as coisas que aconteciam fora de mim, passei a aproveitar meu tempo para olhar mais para dentro.

Eu não poderia mais me cobrar da forma como me cobrava antes. Com dor e mais lenta fisicamente, como eu poderia “correr” atrás das minhas coisas? Impossível: ou eu colocava um pé no freio, ou eu iria me estrepar. Tive que me tornar mais tolerante comigo, aceitar que haviam coisas que eu não conseguiria fazer sozinha, ou simplesmente que haviam coisas que eu não conseguiria fazer de forma alguma. Por isso, tive que começar a pedir ajuda para as pessoas.

Quem me conhece de verdade sabe o quanto isso é difícil para mim. Não tenho medo de incomodar ninguém. Tenho medo de deixar algo na mão de alguém e esse alguém não dar conta do recado, não fazer o que deve, não fazer bem feito, não fazer dentro do prazo correto. Esse joelho machucado me obrigou a ter que deixar algumas coisas em mãos alheias e só torcer para que desse tudo certo.

No mesmo bonde do “tenho que ser mais compreensiva comigo”, tive que passar a ser mais compreensiva com os outros. Em certa medida, eu passei a depender mais de outras pessoas e por isso, antes de mais nada, eu tinha (e tenho) que demonstrar gratidão. E ter que ser grata com alguém que você não confia na capacidade de fazer algo não é fácil (essencialmente no trabalho). A única maneira disso acontecer é você abandonar o seu trono de cristal imaculado, vir para a vida real e chegar à conclusão que aquela pessoa pode não fazer tão bem quanto você, mas está se esforçando para fazer da melhor forma possível. Ao fazer isso eu me espantei: o mundo não ruiu, ninguém morreu e todo mundo continuou fazendo o que deveria fazer.

Além de tudo isso, aconteceu mais uma coisa: eu passei a olhar mais para as pessoas e me colocar no lugar delas. Não quero dizer com isso que meu coração está tão cheio de amor e caridade quanto o da Irmã Dulce, mas a minha noção de “dificuldade” e de “frescura” mudou. O que também passei a enxergar é que a dificuldade de uma pessoa é a dificuldade dela. A minha pode ser diferente e ao invés de julgá-la sobre o que ela não consegue fazer, eu tenho que olhar o que ela consegue dar conta e o que eu conseguiria fazê-la entender.

Pena que eu tenho consciência disso, mas não tenho energia... E vou ter que ser tolerante comigo mesma sobre esse assunto.

O que eu quero dizer contando tudo isso é que, tirando a dor e a dificuldade de locomoção (que aos poucos vai passando, com a fisioterapia), machucar meu joelho naquele dia não foi de todo ruim. Posso até dizer que fez bem para mim, pois me abriu um novo ponto de perspectiva. E quando isso acontece, é melhor aproveitar, pois seu olhar nunca mais será o mesmo para o mundo.

Não quero deixar aqui qualquer insinuação de que estou uma pessoa mais plena, melhor, mudada, nada disso! Continuo ranzinza, depressiva e desconfiada como sempre. A única diferença é que agora estou mais cansada, mais lenta, porém mais observadora, falando mais baixo e escutando mais. Não posso mais me dar ao luxo de me envolver em uma briga de egos ou de “territórios”, pois essas “brigas” não existem na realidade: são apenas distrações em um mundo que precisa muito menos de nós do que nós dele. O que mudou é que agora eu me permito ter alguns luxos, como olhar uma luz bonita, aceitar um gesto de carinho ou observar um caramujo comer. Não estou mais sozinha. Há um mundo ao redor de mim. E devo senti-lo e aproveitá-lo, com todas as suas dores, frustrações, carinhos e lições.

Ribeirão Preto, 2 de março de 2016

Um comentário:

  1. “Quem sempre vive no calor e plenitude do coração, e, por assim dizer, na atmosfera do verão da alma, não pode imaginar o tremor de arrebatamento que assalta as naturezas mais invernais, quando excepcionalmente, são tocadas pelos rios do amor e, pelo ar morno de um ensolarado dia de fevereiro”.
    Nietzsche.

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