11 de ago. de 2019

EM TRAPOS / Legião Urbana - Baader-Meinhof Blues

Meu caro, minha cara,

Tempos atrás, quando minha vó morava no interior (mas aquele interior com força mesmo, não aquele pasteurizado de novela), íamos para a casa dela mas férias. Íamos minha mãe, meu irmão e eu. Raramente meu pai ia pois estava trabalhando na refinaria.

Foi numa dessas férias que meu irmão e eu aprendemos a fazer cola misturando água com farinha de trigo e a empinar pipas (quer dizer: ele aprendeu a empinar, eu ficava só olhando e dando pitaco).

Na casa da frente da minha vó havia uma família muito pobre. Lembro que o muro era apenas um ajuntamento de bambus entrelaçados com arame e o chão era de terra batida. Mas haviam crianças lá, então nada mais importava.

Lembro que aquela casa cheia de crianças só tinha uma menina, um pouco mais velha que eu, acho. O resto, tudo menino. Mas brincadeira de criança não tem gênero, não é verdade?

Exceto uma vez.

Brincávamos de polícia e bandido e, na brincadeira, a menina seria a vítima. Os irmãos dela seriam os bandidos e a vestiram (por cima das roupas normais) com alguns trapos, roupas muito velhas que eram usadas pra limpeza.

Então, começou.

Os "bandidos" (os irmãos da menina) começaram a "bater" nela e a rasgar suas "roupas". Ela gritava para encarnar na personagem, mas acho que era só por isso mesmo. Pensei assim por causa dos olhos dela, fascinados com o que acontecia. A violência com o que incorporavam seus papéis me deixou perplexa. Mas não assustada. Com seis anos de idade, vim saber antes de ouvir Legião que "a violência é tão fascinante...".

Pouco depois minha vó se mudou para outra cidade, um pouco maior, mas ainda no interior. Nem me lembrava mais daquela família e daquela cena.

Até que minha vó morreu.

Quando chegamos na cidadezinha em que ela morava antes, onde seria o enterro, a cidade inteira estava lá. Eu já havia me formado na faculdade e estava sem emprego ainda. Mas, como eu era a primeira neta dela a ter diploma, isso era algo especial (pelo menos, para minha mãe).

Entre todas as pessoas que nos cumprimentavam e nos davam condolências, ouve uma senhora que chamou minha atenção. Ela estava surpresa por eu estar "tão grande" e minha mãe logo foi falando que eu "já tinha até diploma". Atrás dela havia uma moça raquítica com uma bebê no colo. Olhei para a moça e reconheci na hora a menina que teve as "roupas" rasgadas naquela "brincadeira".

A mãe dela dizia entusiasmada "vocês brincavam quando era criança! Por que não conversam um pouco?".

Sem jeito, sentamos num dos banco e procurei ser simpática. A moça raquítica mal conseguia formar uma frase. A bebezinha (com pouco mais de um ano) estava com fome e ela ignorava as reclamações da filha. A impressão que me passou é que ela não sabia o que fazer com aquilo. Peguei uma barra de cereal com chocolate e dei para a menininha.

Perguntei como estava a vida, se ela estava bem, o que tinha feito. Ela só sorria e balançava a cabeça. Sem conseguir formar uma frase. A mãe dela logo veio ao socorro, dizendo que o pai da criança estava "viajando".

A gente sabia que ele não estava viajando porra nenhuma.

Onde não há informação, há imaginação: enquanto a moça quieta apenas sorria e acenava com a cabeça, imaginei o que poderia ter acontecido.

Imaginei uma vida de submissão aprendida. De uma violência aprendida. De uma resignação aprendida. De um sem-futuro aprendido. Aonde era mais importante saber fazer feijão do que conjugar um verbo. Saber lavar roupa no tanque do que uma adição.

Imaginei uma vida onde um único e possível alívio seria um orgasmo inconsequente e uma filha como consequência. Uma filha que tinha fome e que, muito provavelmente, continuaria o ciclo. Uma filha sem pai presente, que "pode" fugir daquilo sem ser crucificado.

Na época eu pensei o quanto eu tive sorte de não ter tido a mesma criação que ela.

Mas, depois de muito tempo, eu percebi porque eu não fiquei assustada com aquela cena da infância.

A violência se torna fascinante quando ela não é apresentada a você como tal.

Quando ela é travestida de Amor, a única coisa que você deseja é espalhar Amor pelo mundo, mesmo que acabe em trapos.

Mococa, 11 de agosto de 2019.


"...e nossas vidas são tão normais..."

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